EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

PIUVA 1

POR: OSMAR ALVES RODRIGUES

 Goiânia, 23 de janeiro de 2005.

PREFÁCIO:

1978
O velho e saudoso Piúva1 de tantas alegrias. Deixou
saudades que só através de uma fotografia podemos avaliar,
se não existisse a foto não teríamos como relembrá-lo com
exatidão.
Tempos saudosos e felizes.

1
Piúva: Árvore silvestre mais conhecida como Ipê Roxo, Pau D’Arco, Tabebuia Impetiginosa, é uma árvore ornamental originaria do Brasil, cuja floração ocorre
na estação seca, época em que perde todas as flores. A madeira apresenta boa
durabilidade e resistência contra organismos que dela se alimentam, sendo difícil
serrar ou pregar. Utilizada na construção civil, currais, acabamentos internos,
instrumentos musicais e bolas de boliche.

Ano de 1978
Essa foto não poderá deixar de ilustrar o nosso livreto,
essa lingüiça sobre o fogão foi comprada pelo nosso velho
numa feira do povoado do Melví. Depois de frita não dava
para comê-la, parecia uma cortiça frita, o pessoal fez uma
gozação em cima do velho o tempo todo que ficamos por lá.
As panelas pertenceram a minha mãe e foram todas roubadas
com o tempo, o casco do tatu ao lado da gaiola foi caçado nas
matas da represa do Batistini.

Foto da década de 70, não tenho a data certa porque
não foi batida por mim. Flávia, Mingo e Ingrid.
Essa vereda ou trilho era a que dava acesso ao rancho.
Nesse tempo era bem fechada a mata, depois o Mário
começou a fazer pães para vender e os netos cortavam as
árvores para utilizar no forno. No finzinho da permanência do
Mário por ali este trilho estava devassado, o rancho do Albino
que era bem escondido na mata já estava bem visível, do local
onde está o Mingo já dava para avistá-lo. Bem à frente do lado
esquerdo do Mingo havia um angico2 enorme este também
não resistiu a “fúria” do Mário. Certa pescaria era umas onze
e meia da noite ao passarmos nesse local, o urutau cantou seu
canto melancólico, um amigo nosso, o Aníbal saiu numa
desabalada que só parou no rancho, ele se machucou muito
na correria, caiu vários tombos. Medorréia pura em pleno Rio
Branco…

2 Angico é a designação comum de várias árvores dos gêneros Piptadenia,
Parapiptadenia e Anadenanthera e são nativas da América tropical, principalmente
do Brasil e são exploradas e cultivadas devido à boa qualidade de sua madeira.

1978
Alvino fritando um bife. Note, encostada no mourão a
arapuca do velho, ele pegava os pássaros apenas por
curiosidade e depois os soltava. Lá se vão 30 anos…

A data certa não me lembro, mas foi no fim da década
de 70. Alvino, Ingrid, a Flávia escondida atrás do Mingo,
Osmar, Ismênia e Neusa. Essa foto foi na frente do Rancho. A
direita de quem entra. A velha bananeira que o Seo João
plantou quando o barraco ainda era do Nisio. Uma fotografia
inédita foi à primeira vez que estive no rancho com todo esse
pessoal.

Anos 70.
Flávia, José, Ingrid e Domingos.
Esse local ficava ao lado do “Clube”, um soldado
invadiu essa área, fez um ranchinho bem ruizinho e ali criava
abelhas Europa, era difícil encontrá-lo por ali. Hoje esse local
bem bonito que aparece na foto foi invadido e se tornou mais
uma favela do que uma vila, acredito que o rio está totalmente
poluído. Hoje não teríamos condições de pescar por ali e
muito menos permanecer no barraco, inevitavelmente
seriamos roubados.

23 de agosto de 1970
Seu João Salvador, Dona Lila e Roberto.
Esse pessoal morava por ali desde os anos 40, como o
Seu João falava.
Depois da morte do velhinho o rancho ficou
abandonado. O Carlinhos filho do Irte, conseguiu a proeza de
colocar fogo no mesmo e destruir a vivenda dos velhinhos. O
ranchinho deles ficava mais próximo ao rio, mas as enchentes
de fim de ano fizeram com que ele se mudasse para mais
longe do rio.

11 de julho de 1970
Irte Geraldo Copine, o Caboclo, sujeito muito bom. A
peculiaridade dele era falar de “soquinho”.
O rancho era o antigo, bem melhor que o nosso mais
eles não cuidaram e o mesmo deteriorou-se. Essa gaiola de
capturar gambá, mais tarde nosso velho utilizava para suas
caçadas, se bem que ele não fazia mal aos bichos, era uma
curiosidade dele, pegava depois soltava.
O Caboclão já morreu há muito tempo.

23 de agosto de 1970 Alvino
Este rancho ficava na junção daquela vazante que nós
gostávamos de armar o espinhel
3 e redes. Ficava bem para
baixo do portão do Seu João.
Era muito alto e tinha três tarimbas4 bem lá no alto
onde os caras dormiam, nunca vimos nenhum deles por lá, até
que o tempo se encarregou de derruba o tal rancho.

3 Espinhel: Método de pesca em que o anzol fica fixo em eiras de corredeiras ou
bóias, sem a intervenção humana.
4 Tarimbas: Estrado de madeira, plano e duro, onde dormem os soldados nos
quartéis e postos de guarda.

26 de setembro de 1970
Ludovico, Renato, Alvino e Bertico.
Fizemos muitas pescarias como esta.

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Comecei a gostar de pescaria uns 50 anos passados,
comecei pescando num laguinho próximo a minha casa, ele
foi formado no tempo que ali funcionava uma olaria,
retiravam o barro para os tijolos ficando o buraco enorme, a
chuva se encarregou de enchê-lo d’água, e os peixes ficaram
por conta das aves que traziam as ovas presas ou nas pernas
ou em suas patas. Acredito que poucas pessoas “não perdem
o seu tempo” com pescaria como elas costumam dizer, falam
que se comprar o peixe sai mais barato. Se olharmos por esse
lado até terão razão, mas o sossego, a paz interior com o
pensamento divagando ao acaso que é justamente o que
procuramos na beira d’água, isso sim, não há dinheiro que
pague.
Quem me colocou nesse hobby foram o Seu João Ribeiro
e se filho Quinho, ambos já se foram. Nossos anzóis eram
feitos com um alfinete entortado, colocávamos uma
minhoquinha naquela coisa e ficávamos os três mocorongos
na inútil espera que algum peixe mordesse a isca. Na verdade
a espera era longa, os únicos burros ali, éramos nós…
Nunca pegamos nada com tal método, mas valeu para
incentivo e o aprendizado, tal hobby nos acompanhou pela
vida afora. Quanto a esse negócio de entortar alfinete, isso era
invenção do Quinho. Mas depois começamos a pescar no
varjão do Antártica, já possuíamos anzóis normais.
Ali aprendi a pescar Traíras que tem seu jeito característico,
sempre levávamos algumas para casa.
Em 1996 todos esses lagos, matas, animais e uma
infinidade de aves desapareceram em função do pregresso.
Em um ano e tanto não havia mais nada por ali. Nesse tempo
eu e o Nico Marangoni compramos algumas redes do João
Pintado e começamos a pescar na represa, íamos com um
amigo do Nico, um tal de Matias da estrada de Ferro que
possuía uma caminhonete. Os caras eram ruins de pesca,
cabia a eu esticar as redes montado numa bóia. Pegávamos
muito sagüiru, carás, bagres, não havia as tilápias na represa,
o interessante foi que nem o Seu João e o Quinho que me
iniciaram no hobby, nunca foram pescar comigo na represa.
A partir de 1955 eu e o Norival quase todos os
domingos íamos pescar ou em Ribeirão Pires ou na Vila
Luzita. Íamos de trem ou de ônibus tanto um como outro, no
ponto final ainda tínhamos que andar a pé por umas duas
horas. Esse companheiro de infância morreu em 2002.
Num domingo estávamos pescando em Ribeirão Pires,
chegaram dois sujeitos e ficaram pescando por ali, não os
conhecíamos, mas em conversa ficamos sabendo que um era o
Seu Elpidio, pai do Jairo e o outro o marido da Irene nossa
conhecida. Nesse dia pegaram 247 carás e nós dois pouco
mais de 30.
Tempos saudosos, tínhamos à nossa disposição muito
barranco de represa para percorrer sem encontrar um
pescador sequer, hoje você vai pescar seja onde for e corre o
risco de roubo. Certo domingo encontramos no ônibus as tias
Justina e Margarida. Quando souberam que íamos para a
represa ficaram indignadas, queriam saber se a “Neguinha”
sabia daquilo. No ponto final ouvi um interminável sermão
sobre os perigos, até estavam certas, a represa é perigosa, mas
se as coitadas abrissem por acaso a mochila cairiam duras ao
verem a garrafa de tatuzinho…
Muito justa a preocupação delas, a represa sempre
matou muito incauto que abusou de suas águas. Aquelas
senhoras eram tias da minha mãe, eu nem imaginava que ali
estavam duas testemunhas que viram a represa “nascer” nos
anos 20, essa Justina nasceu em 1890, muito lúcida em 1983
me relatou detalhes da represa já que ela morou justamente na
parte que foi tomada pelas águas… Seu pai tinha uma fazenda
na região do Batistini e parte dela foi tomada, era a Bilings
que esta sendo formada.
A represa nunca teve qualidade de peixes grandes, a
variedade até era boa, sempre pegávamos carás, lambaris,
bagres, traíras, piaba, sagüiru, ferreirinha, cascudo e as
manjubinhas, havia carpas grandes de mais de 10 quilos, mas
nunca pegamos esse tipo, a partir da década de 60 o único
peixe que se pescava era a tilápia que algum imbecil importou
da África. A carpa também foi importada mas ao contrário da
outra não é predadora, a tilápia devora ovas e alevinos dos
peixes naturais da região levando-os ou a diminuição ou
extinção. Quem começou com o hobby da pesca a partir de 70
não vai conhecer nem metade desses peixes que citei. Nos
anos 60, a Secretaria da Agricultura soltou na represa vários
casais de castores americanos cujo intuito dos técnicos era que
os castores auxiliassem no represamento de algum manancial
em certas regiões. Todos foram caçados impiedosamente por
inescrupulosos.
Em 1968 eu conheci um desses imbecis, perguntei a ele
do porque matar animais indefesos, inofensivos e de carne
cujo sabor era de peixe, respondeu que era pela pele que valia
bom dinheiro.

Com a entrada do Alvino para a família, comecei a
fazer parte do seu grupo de pesca. No início íamos quase todo
domingo pescar no Estoril, eram: Alvino, Ismênia e eu. Num
domingo levei o Itamar, um companheiro muito bom,
estávamos do outro lado da represa frente ao Parque
Municipal quando se formou uma tempestade que se
prenunciava ser violenta. O certo seria ficarmos do outro lado
até que a chuva passasse, mas prevaleceu à vontade da
Ismênia em fazermos a travessia. De nada valeu o Alvino
explicar os perigos a que íamos nos expor atravessando a
represa no meio de uma tempestade.
Começamos a travessia, faltavam uns cem metros para
chegarmos na praia quando desabou o temporal. Um
vendaval medonho com raios por todos os lados, ondas
enormes se encontrava impelidas pelo forte vento. Para nossa
sorte e muito providencialmente bem a nossa frente vimos
uma bóia utilizada para amarrar lanchas, o Alvino segurou no
cabo por uma hora e dez minutos debaixo da maior chuva de
granizo que até então tínhamos visto. Eu retirava água do
barco e tentava acalmar a Ismênia que gritava como uma
possessa, ela queria a todo custo que o Alvino terminasse de
chegar, caso ele largasse o cabo iríamos ao fundo certamente.
O Itamar que era um sujeito até delicado sem experiência nas
coisas ruins da vida tremia tanto que parecia que estava
acometido da doença de São Guido5. O Alvino que estava sem
camisa e levou todas aquelas pedras nas costas ficou cheio de
calombos.

5 Doença de São Guido: Distúrbio neurológico presente na febre reumática. Os
movimentos espasmódicos incontroláveis podem começar sua manifestação de
forma lenta e gradual.

Já no restaurante o pessoal estava abismado em ver a
situação em que estávamos em poder ajudar. Fomos tomar
um conhaque, o Itamar tremia de tal modo que não conseguia
segurar o copo. Sempre tem um gozador que logo
diagnosticou o mal do rapaz, era medorréia pura em plena
represa.
Aquele barco era o “Xará” que deixou saudade, ba
estabilidade, fácil para remar, foi construído nos anos 50 por
um grupo de amigos do Alvino, alguns eu lembro: Alvino e
Alvininho, Fernando, Julinho, Inglês…
Boas pescarias não faltavam, uma delas foi na represa
de Santana do Parnaíba, onde a Klabin tinha uma vasta
plantação de eucaliptos. O rancho que ficamos pertencia ao
Guarda-livros da firma do Alvino. Um lugar majestoso que
ficava num vale ao lado de uma montanha muito alta.
Os participantes foram: Alvino, Alvininho, Seu João
irmão do Alvino, seu filho Claudionor e eu. Fomos de táxi, é
mole? Pegamos muita traíra no espinhel, choveu muito nos
dias que ficamos por lá, foram três dias. Uma recordação
daquele rancho que guardo até hoje foi um casal de pássaros
que fizeram seu ninho na cumeeira6 do rancho, nunca soube
que pássaros eram aqueles. Toda madrugada os filhotes
faziam uma barulheira quando a mãe chegava para tratá-los,
acordávamos com o pipiar deles que ecoava pelos três
cômodos do rancho que eram enormes. Com o Piúva não
demos essa sorte, ao contrário, por muito tempo morou uma
caninana no forro da cozinha, o Nisio recomendava a todos
para que não a matassem. Foi indo até que um dia ela

6 Cumeeira: a parte mais alta do telhado.

apareceu morta no terreiro, algum imbecil não reconheceu
que aquele tipo de cobra é inofensivo e deu fim nela.
Durante uma manhã nessa pescaria, eu acordei tarde e
na pressa de ir com o pessoal revistar o espinhel passei a mão
num paletó velho que estava pendurado na parede sabe-se lá
por quanto tempo, chovia muito, uma chuva fina e constante,
saí correndo vestindo aquilo e gritando para que me
esperassem. Já chegando no barco alguém gritou para o
Alvino remar rápido o barco para sair dali antes que eu
entrasse, só então me dei conta que umas 20, 30 sei lá quantas
baratas tinham saído do forro do paletó e se espalharam por
todo meu corpo.
Nessa pescaria o Seu João fez uma feijoada deliciosa
acompanhada por muita caipirinha, nunca mais voltamos ali,
nunca soube porque, o lugar era sossegado e muito bonito. A
partir de 1960 fomos pescar na balsa, gostamos e fizemos
daquela parte da represa nosso ponto de quase todos os
domingos. Íamos de ônibus até o Riacho Grande e dali,
fazíamos cinco quilômetros até a Balsa. O Seu Barbosa nos
levava represa abaixo no barco a motor, era uma hora
navegando, o ruim daquele trajeto era ouvir as intermináveis
histórias que o homem narrava em seus mínimos detalhes.
Eram casos enfadonhos, até lembro parte de um deles,
era sobre um tal de Gedeum, começava pelo nome
estrambólico, já tínhamos visto Gedeão mas Gedeum era
exclusividade do velho Barbosa. Esse Gedeum era dado a
estripulias e era parente do barqueiro. Como ele não
conseguiu terminar o caso naquela viagem, pediu a nós para
lembrá-lo de terminar o caso em nosso retorno… Seria muita
burrice de nossa parte lembrar o homem, o caso era chato
demais, mas a gozação ficou por muito tempo, alguém
sempre se lembrava daquilo e dizia: “vocês topam voltar no
Seu Barbosa para ele terminar o caso?”.
A turma variava um pouco, as o Alvino, Julio e eu
sempre estávamos presentes. Nesse tempo, começamos a ir
para a represa no caminhão do Sílvio, participavam esse
Sílvio, Evaldo, Haroldo, Ferdinando, Leon, Alvino, eu e
algumas vezes o Cláudio Inglês, Ludovico, Benvenuto e
algum amigo meu.
Aquele canto da represa era isolado, de um lado
somente água e do outro a mata fechada por muitos
quilômetros. Nós supúnhamos que ninguém freqüentava
aquele local, foi ali que pela primeira vez e também a última
que tive a oportunidade de ver um cardume de carpas fazer
uma agitação incrível bem em frente ao nosso acampamento.
Já era tardezinha quando começou a evolução dos peixes,
ficamos maravilhados com o espetáculo inusitado, centenas
delas saltavam fora d’água. Ficou marcada aquela pescaria,
não conseguimos pegar nenhuma usando como isca minhoca.
Depois disso acampei dezenas de vezes na represa e jamais vi
um salto sequer de alguma carpa.
Esse peixe é pescado com massa própria, os japoneses
são bons nisso, já houve quem pegasse carpa com minhoca no
anzol, mas isso já é loteria.
Saímos dessa pescaria animados, após dois domingos
voltamos naquele lugar. Levamos dois quilos de massa, cada
pescador tem sua receita infalível, mas nesse dia não vimos
um salto sequer de alguma carpa, inutilmente jogamos nossas
linhadas iscadas com a infalível massa…
Quem gostou da massa, foram os passarinhos que se
banquetearam com ela, ficaram jogadas no barranco. Essa
pescaria apesar da frustração com as carpas, ficou marcada
pelo bando de paturis que passaram voando na clássica
formação “V”, bem sobre nosso acampamento. O sol já estava
se pondo, então o Alvino olhando a revoada disse: “se um
pintor fizer um quadro dessa paisagem vão chamá-lo de
louco”, lógico que era uma brincadeira, mas a alusão era pelo
inusitado da cena que tinha o pôr do sol todo vermelho como
fundo…
Mas naquele local estava reservada a nós uma das
maiores decepções, o sábado foi tranqüilo, conhecíamos o
lugar e sabíamos que não teríamos companhia indesejável de
outros pescadores. Na manhã de domingo lá pelas cinco horas
levantei e fui para a beira d’água, estava escuro, nisso ouvi
vozes, afinei os ouvidos para captar de onde vinha àquela
conversa, no que olho mais adiante fiquei perplexo ao lado
das nossas linhadas lá estavam cinco bicicletas alinhadas num
capricho até curioso, os camaradas pescavam tranqüilamente.
Acordei o pessoal, disse a eles olharem lá fora, a turma
até pulou dos colchonetes, ao toparem com os pescadores no
nosso lugar favorito e inexpugnável ficaram estáticos, logo
que se recobraram desandaram a proferir palavrões que
fariam as torcidas organizadas de futebol parecerem corais
evangélicos…
Perguntamos aos caras como chegaram até ali,
disseram haver um trilho bem antes da balsa que vai dar lá e
os nunca nos encontramos por não coincidir as pescarias.
Nunca mais voltamos ali. Nas futuras pescarias o Seu Barbosa
nos levava represa acima, lá nos contra fortes da serra do mar,
ali era o limite da represa. Por lá tínhamos certeza que não
veríamos bicicletas.
Nós chamávamos o lugar de tatuzeiro, tinha muito tatu
naquela região, também vimos a carcaça de uma anta, talvez
ferida por algum caçador que não conseguiu acompanhá-la e
seguí-la. Em 1953 fui pescar com a turma do Seu Nenê uns
20km mais ou menos antes do tatuzeiro. Íamos pela Anchieta
e antes da descida da serra seguíamos por uma ruazinha bem
ruim que o pessoal supunha que foi feita por algum lenhador.
Depois de uns 10km alcançávamos a água. Nessa pescaria
fomos passar três dias, chegamos já ao anoitecer de uma
sexta-feira, uma parte da turma ficou para armar a barraca
que era uma lona enorme, a outra saiu para caçar um tatu que
queriam fazer no jantar daquela noite. Na montagem da
barraca ficaram, Miguel espanhol, Irineu, Gordo e eu, atrás do
tatu foram, Seu Nenê, João Panunzio, Fausto Cestari, João
Gordo e o Pitoco que era o cachorro orgulho do Seu Nenê.
A barraca armada durante a noite, ficou bem no meio
do carreiro de uma anta, naquele recanto da serra do mar e
prolongamento da mata Atlântica elas habitam todo aquele
vale. Os camaradas não perceberam essa falha de montar a
barraca no centro da picada da anta. Hoje eu sei que enquanto
esse bicho viver por ali, vai utilizar aquele trilho que via de
regra termina na água.
Lá pelas bandas onde caçavam o tatu, o Pitoco farejou a
anta e deu em cima dela, como era de se esperar a bicha
desembestou na sua corrida louca em direção a água, ao topar
com a barraca no seu trilho não hesitou, saltou sobre aquele
demônio que surgiu a sua frente. Isso foi outra coisa que
aprendi no Araguaia, uma anta jamais desvia de um obstáculo
que se apresente inesperado…
Foi um escarcéu dos diabos, o bicho saltou sobre a lona
fazendo uma barulhada infernal, quando eu vi aquele fuzuê,
sai correndo feito louco, não tinha a menor idéia do que
estava acontecendo, só ouvia o tropel dos companheiros
tentando me ultrapassar, passados alguns minutos caíram na
realidade e perceberam a burrice deles. Eu era um molecão de
12 anos e com razão fiquei assustado, mas os caras eram
veteranos de idade e de represa.
Foi muita sorte estarmos na beira d’água, se
estivéssemos na barraca não seria nada agradável ter um
bicho de seus 200kg rolando sobre nós… Foi gozação até a
madrugada, quando chegaram os caçadores do tatu foi que
esquentou de vez, o Seu Nenê estava furioso com o Pitoco,
cachorro de caça que se preze jamais dá em cima de bicho
para o qual não foi treinado, o cão é bom caçador de tatu não
perde tempo com outro animal.Para piorar o conceito do
rafeiro7, o mardito se perdeu no mato!
O Miguel espanhol que não perdia oportunidade para
gozar alguém olhava para o Nenê e dizia “Bueno su pierrô
caça de tudo, menos tatu”… O velho Nenê não se abalava e
dizia, amanhã você vai comer o tatu caçado por ele, mais
tarde o cão apareceu e no outro dia pegaram o tatu.
Com o pessoal do Alvino, nos anos 60 começamos a
pescar naquela região da represa, a turma mudava muito
pouco e era constante as presenças do Evaldo, Ludovico,
Sílvio, Haroldo, Ferdinando, Leon, Benvenuto, Cláudio inglês
e eu que não perdia uma. Ficou marcada uma pescaria
naquele tatuzeiro pelos nove litros de Piracaia, uma pinga
horrível e muito forte, mas que mesmo assim foi toda
consumida.

7 Rafeiro: Cão guardador de gado.

Algumas pescarias ficam marcadas por acontecimentos
que fogem a rotina, numa delas o Benvenuto pegou um dos
maiores bagres já visto na represa, já estava anoitecendo
quando ele ferrou o peixe. Quando isso acontece o cara fica
alegre, chama todo mundo, mas ele se limitou a me dizer, “ei,
olhe”, já que eu era o único que estava por ali. Eu me
preocupei em fazer a propaganda do peixe.
Esse Benvenuto era um sujeito esquisito, não ria, não
participava das piadas, estava sempre sisudo. Bem ao
contrário do Alvino que quando pegou o filhote no Araguaia
vibrou muito de contentamento, o peixe pesava uns 6 ou 7
quilos. Caso fosse o Benvenuto por certo ficaria olhando para
o peixe com aquele ar de desdém.
Noutra pescaria que fizemos no tatuzeiro, um
acontecimento chato ficou marcado, sumiu ou roubaram a
carteira do Drú que era o Leon, eu tinha levado um
companheiro da Atlantis por nome Tarcisio, o rapaz logo caiu
nas graças do pessoal que até apelidaram ele de Jaboti. Eu
suspeitei dele, ma não tinha como provar ficou como estava.
Ficamos sem voltar lá algum tempo, noutra pescaria
levei o Melinski, nesse tatuzeiro foi onde fizemos nossas
melhores pescarias. Certa noite em que eu e o Haroldo
pescávamos traíras com farol e fisga, ficamos cismados com
um ruído que nos acompanhava vindo da beira da mata,
seriam umas onze horas, nesse tipo de pescaria você anda sem
perceber até alguns quilômetros, estávamos longe do
acampamento e nem avistávamos a claridade da fogueira,
caso você não tivesse que seguir a linha da água por certo se
perderia. Mas fomos ver o que provocava o ruído a nossa
cisma não procedia, era um casal de tatu que estava
acasalando, pedi ao Haroldo para que os deixassem ir, mas ele
acabou fisgando o macho que em seguida caiu na água e só no
outro dia o recolhemos. Sempre fui contrário a matar bichos,
infelizmente nem todos pensam assim…
Nessa noite o Haroldo fisgou meia dúzia de traíras de
bom tamanho. Esse rapaz foi um dos melhores companheiros
de pesca, topava qualquer negócio na beira d’água, ficava a
noite toda pescando se tivesse companheiro. Fizemos isso
muito tempo. Certa noite no tatuzeiro fritamos 25 tilápias e
ficamos comendo aquilo tomando um “goles” até a
madrugada. O Haroldo deixou saudade, bons ventos o levem
velho pescador…
Durante uma noite no tatuzeiro chovia muito, a lona da
barraca estava toda furada, não protegia ninguém, tivemos
que passar a madrugada sentados sobre qualquer coisa ou
mesmo de cócoras. Eu estava sentado sobre uma pequena lata
e cochilando, o Melinski deu um leve empurrão e estatelei no
barro, não houve quem não risse. O Leon havia exagerado na
pinga e estava deitado no barro com a água correndo sobre
ele, tivemos que levantá-lo a força, o Haroldo deu-lhe uns
tapas na cara para reanimá-lo, ainda bem que eram de boa
índole e não apelavam, eram uns sujeitos enormes e
fortíssimos.
Esse rapaz foi outro que se foi cedo demais, talvez 40
anos se tanto, tinha um sentimento de culpa pela morte de um
filho vitimado por uma Pneumonia. Procurou seu pior
caminho a percorrer em sua tristeza, se tornou um alcoólatra,
é a tal história, se ele se julgava culpado e sua mulher porque
não procurou socorro para o filho? Mas, aí já é outra história
que não cabe aqui.
Noutra pescaria que fizemos no tatuzeiro foi outra que
deu tudo errado, fomos passar um fim de semana
prolongado. Na metade do segundo dia terminou a comida,
não tínhamos barco e o Seu Barbosa só viria no domingo a
tarde. Saímos todos a procura de palmito que por ali tinha
muito. O tempo que permanecemos por lá comemos sopa de
palmito com caldo Maggi. Esse caldo Maggi nem levamos, o
Inglês tinha levado para uso dele e nós nos apropriamos
daquilo.
Esse Cláudio Lunardi como pescador era péssimo, mas,
muito divertido se bem que um tanto inconseqüente. Certa
vez estávamos voltando do tatuzeiro e ventava demais, o Seu
Barbosa levou seu filho com outro barco para dividir a carga,
durante o trajeto o Inglês pediu para o segundo barco
encostar, quando este emparelhou ainda em plena velocidade,
ele saltou para o outro barco e isso no meio da represa, o Seu
Barbosa não gostou muito daquilo e lhe chamou a atenção
dizendo a ele que se caísse fora do barco e batesse a cabeça
afundaria sem tempo para nada. Para fazer artes estava
sozinho… Nem sempre.
Numa madrugada o Cláudio descobriu um
formigueiro enorme de saúvas, então ele me chamou para
ajudá-lo a levar aquilo até a barraca onde naquela hora todos
dormiam o sono dos justos, eu sempre gostei de uma arte,
mas aquele negócio não aprovei… Nem desaprovei. Saímos a
procura de um papelão para carregar a formigaiada, como
não achamos nada no jeito, levamos o formigueiro na sua
toalha de banho. Lá fomos nós presentear o pessoal com
aquela dádiva infernal que naquela hora dormiam
beatificamente. Deveriam estar todos “anestesiados” pelas
generosas doses de incontáveis aperitivos ingeridos durante o
jantar. Seria mais ou menos uma hora da manhã, as formigas
foram todas espalhadas no meio da turma sonolenta, teve
alguns que o Cláudio até reservou maior parte daquele
demônio… Saímos dali e fomos para a beira d’água fingir que
estávamos pescando, não demorou muito o Haroldo que era
espeloteado tanto quanto eu saiu gritando para fora e xingava
com todos os palavrões que conseguia lembrar. O Inglês ria
feito um hebéte (demônio). Em seguida ao Haroldo saíram
todos xingando e se estapeando para se livrar das saúvas que
ferraram pra valer. Quem mais sofreu foi o Mimo que ficou
com vergões no pescoço e braços. Tiveram que desmontar a
barraca e montá-la bem distante dali.
Algum deles mais observador percebeu que o Cláudio
naquele momento das formigas invadirem a barraca não
estava lá dentro, o que ele ouviu de palavrões não estava em
catecismo nenhum. Em uma pescaria anterior ele tinha jogado
um sabonete dentro da panela onde ferviam o macarrão, nesta
pescaria eu não estava.
Essa pescaria foi a ultima que fizemos no tatuzeiro, o
Alvino já conhecia o Piúva que pertencia ao Nisio e desde
então passamos a freqüentá-lo.
No Rio Branco a variedade de peixes era maior que a
represa, também a quantidade, as espécies são mistas, tanto
da água doce como do mar. Da água doce tínhamos: cará,
bagre, lambari bem menor que o da represa, traíra preta e a
rajada que é maior, tajaba, e da água salgada tínhamos: tainha,
parati, robalo, bagre do mar que chamam de cabeçudo,
enguia, siri, caranguejo, camarões, e alguns peixes diferentes
que pegávamos na rede e não sabíamos o que seriam, se bem
que pequenos. Eu cheguei a ver uns camaradas no porto do
clube pescar camarões enormes utilizando uma peneira
amarrada com três cordinhas e como isca pedaços de peixe
podre, afundavam e peneira, passados alguns minutos
puxavam rapidamente trazendo até meia dúzia de camarões.
Até hoje não sei porque nunca tentei fazer aquilo…
No Rio Branco ao contrário da represa víamos uma
variedade muito grande de animais silvestres, eram capivaras,
lontras, ouriço, quati mirim que certo dia apareceram no
quintal do Piúva um casal e quatro filhotes, esquilinhos e até
uma preguiça que o Zé Preto queria me vender. Veados
também tinham, mas estes eu nunca vi, o nosso velho topou
com o campeirinho bem ao lado do Piúva, estava arfando
muito cansado provavelmente fugindo de cães.
Numa manhã eu, a Maria, o velho e as meninas
fomos procurar orquídeas no topo da serra, já para começar a
descer para o outro lado ao passarmos por um barranco onde
havia uma gruta, ouvimos o rosnado da suçuarana que é a
onça parda, já tinha ouvido seu rosando no zoológico e depois
no Araguaia, ela não esturra como a pintada, estávamos a
menos de quinze metros dela, mas não a vimos, tratamos de
sair rapidinho dali. Depois ingenuamente comentei com o
Alexandre que chamávamos de sargento sobre a presença do
animal na serra. Disse ele que fazia tempo que perdeu seu
rastro, até pensou que tivesse ido embora e que ele ia pegá-la
à tarde. Ainda falei a ele para deixar em paz que tais bichos á
estavam se tornando raro. Mas ele foi, disse que o couro valia
bom dinheiro.
Não acreditei que pudesse pegá-la, mas fiquei receoso
com a sorte do animal. Na manhã seguinte ele passou no
rancho e bateu na porta, pois ainda estávamos deitados, o
maldito tinha matado o filhote e a onça conseguiu escapar.
Mas naquele rio não fomos nós a pegar o maior peixe, num
sábado em que o Alvino estava lá com seu pessoal
encontraram dois garotos tentando tirar da água o que
supunham que fosse um jacaré, isso foi naquela vazante onde
armávamos o espinhel bem rio abaixo, ao ajudarem os
meninos ficaram espantados ao ver aflorar a água um
tremendo cabeçudo que é o bagre do mar, dizia o Alvino que
o peixe passava dos 10kg. Os garotos utilizaram como anzol
um ferro de uns 10cm com um furo no meio onde amarraram
um arame que prenderam num galho e a isca foi um pedaço
de carne, segundo ele queriam pegar um jacaré. Caso
houvesse esse bicho por ali nós já teríamos visto ou mesmo
pego algum. Não era sempre que se pegava um peixe
daqueles naquele rio, nos deveríamos ter tentado aquele
método dos meninos. O que sobrou para os garotos faltou em
nós que era imaginação…
No Casqueiro havia jacarés, o Melinski e seu pai
tinham pegado dois pequenos e criavam em casa. No Piúva os
pescadores eram o Alvino e eu, o Ludovico gostava de pescar
de linhada e não ajudava no espinhel e nem nas redes, o
Renato idem, o Roberto ia para caçar passarinho com a gaiola,
não se preocupavam, pois sabiam que levariam para casa 4 ou
5 peixes bons que pegávamos no espinhel, e note que o Alvino
e eu passávamos horas preparando aquilo.
Nessa pescaria de espinhel é necessário dar uma
revisão nos anzóis para que o peixe não fique a noite toda
preso se não acaba fugindo, certa noite fomos todos revisar o
espinhel, Alvino, Ludovico, Renato, Bertico e eu, a nota
curiosa foi que logo que saímos do porto vimos um
passarinho dormindo num galho baixo, encostamos bem
quietos e o Alvino pegou o passarinho e por brincadeira
colocou no bolso da camisa mas ele voou rapidamente, caso
fosse um gambá, já tinha virado a janta do bicho. São coisas
simples, mas que ficam marcadas pelo inusitado. Ao tempo
que o Piúva pertencia ao Nisio, era comum jogar truco até a
madrugada, eu gostava de ouvir a barulhada que faziam.
O mais agitado era o João Polaco, gritava o jogo todo.
Nunca fomos com a cara do homem, parecia ser boa gente,
mas o que fica é a primeira impressão e não adianta insistir.
Foi um dos maiores predadores tanto do rio quanto da mata,
felizmente ele só ia para lá quando o Nisio o levava. Nós
também predávamos o rio, mas bem mais moderados.
O mais endiabrado era o Carlinhos o filho do Irte, ele
passava dos limites em suas artes. Tanto ele aprontou que
deram a ele o mesmo remédio. Durante uma pescaria o
Márcio defecou dentro de sua bota de borracha cano longo.
Eu era o único a saber daquilo, na manhã seguinte bem
cedinho fomos saindo par ao rio e chamando por ele que era o
último a sair da cama, para não ficar para trás saltou da cama
e foi calçando as botas sem ao menos revistá-las pra verificar
se não havia aranhas dentro. Também nem percebeu que uma
das botas estava recheada. A manhã toda ele se queixou que
sentia um fedor de merda e não sabia de onde vinha, o
pessoal dentro do barraco vez ou outra olhava no solado de
suas botas para verificar se não eram eles que pisaram num
monte.
Esse Carlinhos era bisonho, não era muito esperto,
depois do almoço sentado na varanda o rapaz descalçou as
botas, foi então que ele viu a origem de todo aquele fedor.
Meu amigo foi à coisa mais feia e repugnante que eu já tinha
visto, o pé do Carlinhos estava de tal modo impregnado com
aquelas fezes que ficou todo amarelado, pudera metade do
dia ele socou, amassou e chafurdou seu pé naquele monte de
merda espremido dentro da bota.
Por mais que lavasse o pé o cheiro não saia, alguém
sugeriu a ele que andasse descalço no barro que o fedor
desapareceria, de fato melhorou. A bota ele deixou na beira
do rio próximo ao porto, mais tarde alguém deu um bico nela
jogando-adentro do rio.
Certo dia o Nisio levou para o rancho Piúva alguns
amigos, o tal Carlinhos estava junto com a turma, um velhote
do grupo fumava um cachimbão vistoso que logo chamou a
atenção do Carlinhos. Deve ter bolado alguma arte, pois logo
o rapaz começou a esfarelar as cabeças de vários palitos de
fósforos e juntar a pólvora.
Quando surgiu a oportunidade ele colocou uma
camada de pólvora dentro do fornilho do cachimbo e cobriu
com uma camada de fumo.
A tarde depois da janta, foram para a varanda jogar
truco, a varando do antigo Piúva era enorme com mesa e
bancos fixos. Truca daqui, truca dali até que o homem
acendeu o pito, tão entretido estava no jogo que ele não
entendeu nada quando o tal cachimbão entrou em erupção, o
velhinho saltou do banco numa rapidez incrível para sua
idade, diziam depois que o homem parecia que estava
pitando um maçarico, o cachimbo detonou com uma labareda
seguida de um fumaceiro, o safanão que o homem deu no pito
atirou aquele demônio no meio do mato, o bigode e a
sobrancelha ficaram totalmente chamuscados, o rapaz
exagerou na pólvora. O Irte logo percebeu quem foi o
façanhudo daquela arte, caiu de pau em cima do Carlinhos e o
levou para passar a noite do outro lado do rio naquela
prainha frente ao porto. Pediu a todos que não levassem nada
ao rapaz o que foi uma temeridade fazer aquilo, ali havia
cobras venenosas e caso ele se assustasse com alguma coisa
por certo tentaria atravessar rio e morreria já que não sabia
nadar.
Na manhã cedinho foram buscá-lo, estado todo
inchado pelos ataques de borrachudos.
Até 1964 morava ao lado do rancho dos Compadres um
casal já bem velhinho e um filho também já meio velho. O
velho era o Seu Inácio e sua mulher não lembro o nome, o
filho era o Salvador que trabalhava na Prefeitura da Praia
Grande. O Seu Inácio vendia pinga e cigarro a quem se
aventurasse por ali. Algum tempo depois se mudaram para a
região o Mário, sua mulher Maria e os netos Ronaldo e
Reinaldo. O Mário fazia pães e bolos que os netos vendiam ou
na praia ou nas vilas das redondezas. Logo a Dona Maria se
enturmou com o Salvador solteirão, quando estávamos
pescando para cima do clube sempre víamos os dois passarem
no barco, diziam que iam pescar carás num remanso lá para
cima, até conhecíamos o local que era muito bonito, o rio
espraiava suas águas para dentro da mata entre árvores e
capoeiras do mato onde pegávamos muito cará bonito.
Tinha um pé de carambola na margem direita, como o
local era isolado ainda conseguíamos pegar muita carambola
quando eu ia até lá com a Maria e as meninas.
Mas quanto a Dona Maria e o tal Salvador, alguém do
nosso grupo logo questionou aquela pescaria esquisita,
diziam que ao invés deles iscarem a minhoca no anzol, eles
preferiam escondê-la… De fato muito esquisito um solteirão ir
pescar com sua vizinha num lugar tão longe, mas vamos tirar
o chapéu para o homem, enfrentar a Dona Maria atestava que
o cidadão em questão tinha apetite, muito apetite…
Com o passar do tempo, notamos o quanto o Mário era
destruidor da mata, como ele necessitava de lenha para o
forno de assar pães, colocava os netos para derrubar árvores
da redondeza, sempre víamos os garotos pondo abaixo as
árvores maiores. Aquela vereda que dava acesso ao Piúva só
restava capoeiras, o rancho do Albino antes situado dentro da
mata com muitas árvores ao seu redor, agora já estava
exposto, já no finzinho da nossa permanência por ali dava
para avistá-lo de longe.
Havia mais dois ranchos nas imediações, o Ipê do
Albino e o Ingá do Picolli que certa vez o Mingo disse que
aquele homem era que nem cabelo de freia, existia, mas
ninguém via.
Tanto do lado de lá do rio como do lado de cá habitava
toda uma comunidade. Do lado de lá: Carlito, Angelina e o
filho Roberto que moravam no sítio do bananal e os
empregados Cosme que morreu bêbado no rio e Epifânio
conhecido como Pifani, alem de um casal ainda jovem. Bem
antes do sítio morava o Alexandre, sua mulher e duas filhas, e
mais para baixo da montanha morava o Seu João Salvador e
Dona Lila.
Do lado de cá moravam: Seu Cristóvão e Dona Elza que
eram os guardas do clube, Naldo e Francisca e o filho João
Ladrão. Mário, Dona Maria e os netos Reinaldo e o Ronaldo.
Pouco depois o Alexandre mudou para o lado de cá do rio e
no seu lugar foram o Zé Preto e a Dona Vitória e sua mãe.
Ainda do ciclo de amizades do nosso velho tinha o Barduco
que morava na primeira casa subindo a estradinha. Depois
veio o negro Zelão morar no clube.
Nosso velho estava enturmado com todo esse pessoal,
isso era bom para ele, ajudava a quebrar a monotonia.
Quando eu estava por lá o tal Barduco e seu filho sempre
aparecia para uma pescaria, ficávamos no rio até quase a
madrugada, a paciência do homem era recompensada por
vários bagres e tajabas que ele pegava. Eu até gostava de ficar
no rio, era melhor que ficar no barraco sem opção de fazer
alguma coisa. As vezes eu e o velho íamos fazer hora no clube,
isso a noite, antes tinha o Seu Cristóvão que era um bom papo
e depois o Zelão o qual era divertido prosear com ele. Tinha
também o Mário, mas nunca gostei de freqüentar sua casa.
Certa vez ele pediu meu Fusca emprestado para ir à cidade
Ocean, arranjei uma desculpa, pois não tinha lógica dar um
carro na mão daquele homem. Com o tempo ele comprou
uma Kombi bem velha, certo dia meu pai foi com ele até o
povoado do Melvi pouco acima do boi na brasa, em dado
momento o motor da Komi se soltou e caiu no meio da
estrada, o homem ia no embalo e nem percebeu, foi preciso
algum carro passar por ele e dar o aviso que o motor estava
jogado lá para trás da estrada… O velho dizia que se
arrependeu sair com o Mário naquela Kombi, era uma agonia
ver o homem querer ultrapassar uma carreta e não ter
velocidade para tanto, e o pior era que no sentido contrário
vinha vindo outra carreta e nosso velho se esgoelando para
ele parar ou sair pelo acostamento contrário, no último
momento o homem voltava para detrás da carreta. Para sorte
do Mário e da sua família a Kombi pifou de vez e foi vendida
ao ferro velho.
Numa segunda-feira à tarde apareceram no rancho seis
mulheres que trabalhavam na boate Chaparral. Tinham
levado refrigerantes e lanches para passarem a tarde na praia
do outro lado do nosso porto. Queriam que eu as atravessasse
para o outro lado. Eu as aconselhei para que fossem no porto
do clube, pois ali a praia era melhor e mais segura. Fiquei
intrigado com aquilo, perguntei ao velho se o dedinho dele
não estava metido naquilo, ele garantiu que não tinha nada
com aquilo…
Em 1969 fomos ao Piúva com uma turma bem grande.
Eram três carros, Alvino, Ludovico, Haroldo, Márcio, Valter,
Carlinhos, Eu, Edson Rangel e Edson Giardini que eram
amigos de serviço. Certa manhã saímos para o rio em dois
barcos, estava chovendo direto, todos usavam capas de chuva,
num certo momento, o banco traseiro do barco da frente se
soltou e o Rangel caiu na água. Nosso barco vinha logo atrás,
agarrei o rapaz pelas orelhas e gritei: “ta sarvo”. Fiz aquilo
por gozação, bom nadador o Edson já tinha se desvencilhado
da capa, então quem deu o maior grito foi ele: “ta sarvo o
caraio, você ta arrancando minha oreia!”. Foi gozação por um
dia.
Mais tarde já no barraco, vi o Alvino rindo sozinho,
perguntei o que havia, ele apontou o Giardini que estava na
varanda todo armado, era uma faca e um revólver na cintura e
do outro lado um enorme facão preso a uma bainha
ornamentada. O engraçado da coisa era que o homem ficava
se admirando para ver se estava bem naquela indumentária
de desbravador, ridículo… Acredito que ele não via a hora de
se vestir a caráter naquele mato.


Já chovia há vários dias na região do Piúva, aquele
trilho ao lado da varanda do rancho estava que era barro
puro, resolvi fazer uma estiva com varas para melhorar o
nosso caminho. Nosso velho aproveitou uma estiagem para
fazer uma visitinha ao Seu Cristóvão. Como a chuva
recomeçou ele retornou naquele seu trote que já estávamos
acostumados a ver, sentado na varanda eu apreciava a chuva,
só vi quando o velho levantou as duas pernas no ar imitando
um jogador de bola dando uma bicicleta, ele se estatelou de
costas no barro. Naquela sua corridinha o velho tropeçou
numa vara que estava fora de lugar e caiu espetacularmente,
foi cômico, ele rolou pelo barro se sujando da cabeça aos pés.
Ainda deitado no lamaçal o primeiro palavrão foi a tal
de caralheta, seguido de “puta que o pariu, fizeram esta
merda só para me f…..”. Ainda debaixo de chuva jogou no
mato todas as varas da estiva.
Certo dia o velho estava pregando um sarrafo na janela
do rancho, o Mingo e o Silas como bons curiosos assistiam ao
lado. Não demorou muito o velho sentou o martelo no dedo, a
primeira coisa que vinha em sua boca nessa situação era a tal
de caralheta. O Mingo olhando para mim muito sério e cheio
de curiosidade perguntou: “tio, o que é isso que o vô falou?”,
eu me fiz de desentendido e perguntei: “que palavra foi
essa?”. Ele repetiu: “essa caralheta que ele xingou…”.
Respondi que era mais ou menos aquilo que ele estava
pensando que fosse, o velho aglutinou as sílabas do “casal de
sexo” e deu naquilo…
O velho José estava pregando uma ripa no portal tendo
como assistentes o Mingo, Silas e eu. Eu ainda achava que os
dois estavam ali esperando outra martelada no dedo como da
outra vez. Até que o Mingo perguntou para o que servia
aquela ripa que ele estava pregando. “É uma alçaprema8”
respondeu o velho, serve para reforçar a porta. De longe eu
observava a cena, “é uma alça o quê?” Perguntou novamente

8 Alçaprema: segundo antigos registros portugueses – aparelho que serve para
espremer. Instrumento do ferrador próprio para apertar o focinho das bestas
quando são ferradas.

o Mingo, dada a resposta ele veio me perguntar se aquilo
existia ou o velho deu aquele nome ao acaso.
Eu lá sabia o que era uma alçaprema, nunca tinha
ouvido tal nome. Depois vasculhando o dicionário eu vi que
aquilo poderia ser uma trava para escorar o mesmo, uma
alavanca para erguer pesos.
Ainda nessa pescaria, o velho serrava um pedaço de
tabua tendo como assistente ainda o Mingo e o Silas. Aliás, era
só alguém se propor a fazer alguma coisa que os dois logo
estavam sapeando por ali. Serrando a tabua o velho
perguntou aos dois porque colocavam o nome nos filhos de
Roque, lógico que os dois garotos não teriam uma resposta
satisfatória para o velho. Então ele emendou, é por causa do
serrote que faz roc, roc, roc… Eu ri mais dos meninos que após
um silêncio olharam para mim sérios, até que o Mingo disse:
“essa foi terrível heim tio…”.
Vez ou outra, eu também levava as minhas, certo dia eu
observava o velho cozinhar um negócio esquisito até que
perguntei o que era aquilo. Disse ele que era ervilhas com
fricandó… Dizia ele que quando serviu o exército, nas folgas ia
com os companheiros tomar banho de mar e depois fiam
jantar ervilhas com fricandó, esse negócio era um molho de
ervilhas com carne cortada em tiras, depois eu vi num livro
essa tal de ervilhas com fricandó…
Tais esquisitices do Piúva era o que dava um ar
diferente naquele rancho e depois viravam histórias.
O Ludovico quando fritava peixe colocava três rodelas
de cortiça na frigideira que era para não grudar o peixe. Era
uma simpatia dele. Não deixava de ser uma esquisitice do
homem. Hoje eu frito peixe na beira do rio e não uso cortiça e
o peixe não gruda, basta ter óleo bem quente e não mexer com
o peixe. Tais esquisitices faziam parte do nosso dia a dia no
Piúva, por isso aquele rancho tinha seus encantos.
Já pensaram como deviam ser as pescarias do Albino
no seu rancho? Para começar aquilo era uma caixa de fósforos,
ele construiu aquilo para ele e sua mulher, nunca vimos o
homem com uma turma naquele barraco. Mais tarde os
dissidentes do Piúva passaram a freqüentá-lo que eram o
Nisio, Márcio, João Polaco e o Carlinhos. Deviam ficar
espremidos por lá.

Nosso velho deixou saudade naquele rancho, ele foi
um velho diferente, sua matéria envelheceu, mas o espírito se
manteve jovem o que é muito importante, faz com que as
pessoas que o cercam te admire e respeitem…
Para o diabo aqueles que questionavam sua presença
naquele barraco!
Gozação era o que não faltava no barraco, certa
pescaria, pegamos no espinhel uma cobra d’água, não é
venenosa e há quem as comam, sabíamos que o Renato era
muito medroso e colocamos a bicha no meio do trilho que ele
ia pescar. Pescando do outro lado, ficamos de olho nele que
vinha descendo junto com o Ludovico, o homem avistou a
cobra já em cima dela, começou a dar pulos e gritar, até o
Ludovico deu seus saltos…
Em 1970 fomos para o Piúva com o Alvino, seu irmão
João, Ludovico, Tarcisio filho do João, Márcio, Valter e eu.
Bolei uma brincadeira para assustar os dois novatos, passei
uma linha pelo teto e amarrei na tabua de bater carne que era
enorme e a ponta da linha ficou ao lado da minha cama. A
tabua ficou pendurada do lado de fora próxima a porta. O
Piúva antigo tinha os cômodos invertidos com duas portas. À
tarde chegamos do rio, alguém preparou uma caipirinha
reforçada e ficamos na espera da janta cujo cozinheiro era o
Ludovico, mas tarde jogaram baralho até as tantas da noite até
que foram dormir. Já na cama é comum contarem casos até o
sono chegar. Então chegou minha vez de agir, dei alguns
puxões na linha e a tabua bateu firme na porta do lado de
fora, só o Márcio sabia daquilo. O curioso é que os veteranos
sempre deixam para os novatos irem na frente ver o que está
acontecendo, e geralmente o mais medroso se apresenta,
coube ao Tarcisio verificar o que seria aquilo. Ele levantou-se
e ficou cismado parado no meio do quarto olhando para a
cozinha até que criou coragem e foi até a porta e numa
posição grotesca ficou observando, o Alvino dizia depois que
ele dobrou o corpo e ficou com dois metros de bunda esticado
para trás, na sua indecisão dei mais um puxão na linha, foi
muito para sua fraquinha coragem, correu de volta para a
cama com os olhos arregalados, assustadíssimos seu pai já
estava em pé, foi devagarzinho até a porta divisora e ficou na
escuta tendo antes pego um pedaço de pau, dei mais uma boa
puxada na linha, o homem perguntou duas vezes: “quem ta
aí?” “Quem ta aí?” Em resposta bati mais duas vezes na porta,
o homem lascou uma paulada na porta que até rachou a tabua
e voltou correndo para o quarto. Estava apavorado dizendo
que os índios estavam ali!
O homem teimava em dizer que os “peles vermelhas”
estavam ali. Engraçado, as pessoas que não lêem, que não
conhecem mato avistam índios onde quer que exista uma
floresta, o Nico Marangoni foi outro que me alertou para
tomar cuidado com os índios no Araguaia, se bem que ali
tinha índios, mas para desconhecimento dela já estavam
integrados na vida dos civilizados há mais de 100 anos…
Mas quanto ao Seu João, eu ri muito debaixo da coberta
e eles desconfiaram da brincadeira, pensei que ia ouvir um
sermão violento, pelo contrário, eles até gostaram daquilo, o
Tarcisio chegou a dizer que tudo foi novidade para ele que
nunca tinha participado de uma pescaria, deve ter gostado
mesmo, passado duas semanas ele retornou comigo ao Piúva.
Num sábado eu estava com nosso velho no rancho quando o
Mário deu a notícia que o morador do bananal matou sua
mulher na Pedro Taques. Fomos vê-la, estava jogada no
acostamento, conversava ela com um caminhoneiro nem
percebeu quando seu marido chegou e deu-lhe várias facadas.
Algum tempo depois estávamos no rancho quando ele passou
já com outra mulher, são pior que bicho, nem bem saiu uma já
tem outra no lugar ainda mais nas condições que a outra
“saiu”…
Vale lembrar que ele não pagou pelo crime, coisa rara
acontecer isso com o pobre, isso foi motivado pelo lugar que
ele morava de difícil acesso.
O Seu João e a Dona Lilá moravam numa tapera de
paus grossos colocados em pé, o rancho era coberto de sapê,
dormiam num jirau9 bem alto por causa das enchentes que
eram freqüentes e também das cobras como ele dizia.
O homem plantava abóboras, mandioca, batata doce,
inhame, banana, seu quintal era repleto de goiabeiras e
limoeiros, dizia ele que já beirava os 80 anos, pelo menos três
vezes na semana ele passava frente ao Piúva com sua cesta
cheia de bananas, abóboras e outros que ele vendia aos

9 Jirau: Qualquer armação de madeira em forma de estrado ou palanque.

moradores de diversas vilas na região. Em 1970 eu estava
conversando com ele no seu rancho quando vimos um grupo
de pessoas descendo o morro carregando amarrado num pau
um cadáver envolto num lençol, era um trabalhador do
bananal que morreu do coração.
No tempo que o Piúva pertencia ao Nisio, o Seu João
plantou alguns pés de banana e cuidava delas, sempre
encontrávamos o quintal limpo e carpido, depois de sua
morte em 1971 sobraram três bananeiras, a partir daí quem
cuidava delas era nosso velho. Em 1984 que no mês de julho
estive ali pela ultima vez, para minha tristeza constatei que
ainda restava um dos pés de bananas e já bem definhado e
esquecido no meio do mato espesso que se formou.
Uma boa recordação do velhinho Seu João e também
do nosso velho que por ali morou alguns anos. Deixaram
saudade naquele lugar. Dizia o Seu João que ao lado do Piúva
já do outro lado da valeta, tinha sido um cemitério de
escravos que trabalhavam no bananal do outro lado do rio e
que ele quando jovem conheceu o tal cemitério e chegou a ver
as casas velhas onde moravam os tais escravos que ficavam no
topo da montanha.
Esse Seu João dizia que nasceu ali, o Nisio sempre dizia
que já tinha ouvido o velhinho contar esses casos. Também
disse que andando no alto da montanha chegou a ver ruínas
das casas. Também eu e um amigo que foi lá para caçar
topamos com vestígios do que tinha sido uma casa bem
grande, bem no centro dessa ruína nasceu uma árvore enorme
e muito copada. Se considerarmos que uma árvore daquele
porte que dois homens não conseguiriam abraçá-la, no
mínimo ela demorou uns cinqüenta anos ou muito mais para
chegar naquele tamanho, vamos repensar no que o velhinho
dizia idade para ter visto tudo aquilo ele tinha, se em 1962 que
foi quando o conheci ele dizia que estava com 70 anos, supõese
que ele tenha nascido por volta de 1890 por aí se não for
menos, já que ele já estava bem acabado. Talvez até fosse filho
de algum escravo alforriado, como não tinha documento
ficava difícil saber ao certo.
Sempre que estávamos no rancho ele aparecia, fosse
por uma pinguinha ou mesmo para jantar, ele passava cedo
com a cesta cheia dos seus produtos e só retornava já
escurecendo, sua caminhada era lenta, o peso dos anos já se
fazia presente.
O homem andava de noite sem ao menos ter uma
lanterna ou mesmo um sapato, sempre de sandália havaiana.
As cobras venenosas saem à noite para se alimentar, estava aí
o risco dele encontrá-las. Pelo menos duas vezes eu levei o
homem até seu portinho, eu ficava com dó dele ter que remar
sua canoinha por todo aquele trecho alem da idade ainda
tinha as pingas que ele entornava antes da janta. Ele falava de
sua velhinha que morria de medo de ficar sozinha naquele
lugar isolada de tudo.
Do porto onde eu deixava o homem ele tinha que
caminhar uns 150 metros era sabido que ali havia onças e ele
corria o risco de topar com elas.
Antes de eu voltar com o barco ele me alertava, “Seu
Osmar reme pelo meio do rio e nunca pelas beiradas os bichos
saltam do galho pra dentro do barco”…
Não sei se era uma alusão às cobras ou as onças.
Sempre há os incrédulos que me criticavam por dizer que
naquele lugar havia cobras ou as onças, o Carlito do bananal
tinha um problema sério com esses bichos que comiam os
porcos e galinhas, lembrem-se do recorte do jornal a Tribuna
de Santos de 1966 que trouxe na primeira página a onça que
barbarizou a Vila Mirim e nossa região no Piúva, ali era o
miolo da serra do mar…
Em 1971, fomos para o Piúva, eram: Alvino, Ludovico,
Renato, Berto e eu encontramos logo cedo sentados no degrau
da escada do rancho o Seu João e a Dona Lila. Era um sábado
e logo percebemos que não era um simples passeio que
estavam fazendo. O velhinho vestia um terno azul marinho,
camisa limpa e calçava o indefectível chinelo havaiana todo
amarrado com barbantes. Dizia o Seu João que ele estava
muito doente, a Dona Lila em sua simplicidade cismava que
ele tinha sido picado por alguma cobra. Até nem demos
crédito a ela, caso tivesse sido mordido por alguma cobra
naquela idade e muito debilitado, ele não teria conseguido
fazer a caminhada de sua casa até seu portinho e muito menos
caminhar aquele trecho do nosso porto até o barraco, muita
agitação faria com que o veneno circulasse mais rápido
levando-o a morte rapidamente. O homem era negro, mas
estava amarelado, vai se saber se por icterícia provocada pela
cachacinha que ele tanto gostava ou mesmo por uma hepatite.
A última coisa que ele falou antes do Roberto levá-lo ao
hospital foi: “cheguei ao fim da vida Seu Osmar, para mim
está tudo acabado”, demos uma palavra de alento a ele e
realmente foi à última vez que vimos o homem em vida.
Durante aquela conversa com eles deu pena de ver a
velhinha, na resignação da vida que levavam era
impressionante sua calma, com o olhar perdido na mata a
mulher mirava um ponto fixo em algum lugar de sua
imaginação sem ao menos pestanejar. Fiquei imaginando no
que estaria ela meditando naquele momento que seu
companheiro de toda uma vida estava prestes a deixá-la
sozinha. Foi tudo muito triste, dali em diante ela teria que
remanejar toda sua vida para uma nova etapa que acredito
que foi breve dado a sua idade, foi comovente.
Não tivemos notícias do Seu João naquele fim de
semana, passados uns dez dias retornei ao Piúva com o
Tarcisio sobrinho do Alvino, no rio encontramos com o
Carlito marido da Angelina que nos disse que o Seu João tinha
falecido alguns dias após sua internação, disse que a Dona
Lila pegou as galinhas e levou para o sítio do bananal e mais
tarde foi para São Vicente morar com conhecidos dela. Nos 12
anos seguintes que freqüentei aquele lugar jamais ouvi
notícias dela. Não demorou muito foi a vez do Carlito partir
desta, seu coração problemático o deixou a mão em pleno
bananal.
Acredito que a Dona Lila nunca foi para São Vicente eu
supunha que ela estivesse morando ou na Vila Mirim ou no
Caiçara pois ela nem se preocupou em passar em seu
ranchinho e pegar suas coisas, até a fotografia dela e do Seu
João estava no rancho sobre o caixote que servia de armário,
eu bati aquela foto em 1964.
Nunca soubemos a quem pertencia aquele sítio do
bananal, mas o Carlito e a Angelina estavam por ali desde os
anos 50.
Do Seu João temos uma recordação um tanto cômica,
na primeira vez que lá estivemos, o Marcio e o Valter que
eram bem meninos estavam brincando na canoinha do Seu
João, acabaram por retirar um batoque de madeira que tapava
um furo no fundo da canoinha, com isso ela afundou, era
comum o homem deixar sua canoa no portinho e ir fazer suas
compras. Mais tarde chegou o velhinho que vendo a canoa
submersa e os dois meninos por ali não teve dúvidas, foi
reclamar no rancho. O homem fez um carnaval dos diabos,
fomos todos ver o “estrago” que os safardanas aprontaram.
Quem dialogou com o Seu João foi o Evaldo, o homem estava
irredutível, ficou indignado pelo fato de alguém ter entrado
em sua canoa e enchê-la d’água.
O Evaldo provou a ele que nada foi danificado e o furo
já existia, o homem não se deu por vencido e lascou em cima
do Evaldo. “Mas que eles estavam dentro da canoa deu para
você ver não é?” O que deixou o pessoal mais chateado foi
quando ele arrematou: “quem me deu essa canoa foi o doutor
Inácio, ninguém tinha o direito de entrar dentro dela!”.
Foi embora resmungando sem admitir que não tinha
razão alguma naquele caso. Nós ainda não tínhamos amizade
com ele, quem o conhecia bem era o Nisio. O Evaldo ainda
comentou: “Esse pessoal humilde tem a mania de colocar o
nome de um doutor na conversa para se sentir importante!”.
Logo pensei, se fosse eu e o Lilo que tivesse feito aquilo com
motivos para reclamação do velhinho, ah meu amigo,
seriamos justiçados no ato na frente de todos que ali estavam
sem um prévio julgamento, ainda que tivéssemos 100% de
razão, aliás, nem 200% nos salvaria, nesse caso para sairmos
ilesos não poderia haver reclamação a não ser que o nosso
próprio velho nos tivesse dado um belo de um flagrante.
Eu sempre me identifiquei bem com esse pessoal
humilde que o mundo judia deles ai fora, mas confesso que
fiquei com bronca do Seu João, mas logo fizemos amizade e
até lavei roupas para ele e bati uma foto do casal. Ao longo do
tempo notei que só a mim e ao Nisio ele chamava pelo nome,
talvez porque fossemos os únicos que o procurava.
Eu e o Tarcisio estávamos pescando próximo ao antigo
portinho do Seu João quando encostou a canoa do Carlito, ele
nos deu a notícia da morte do Seu João, aproveitamos e fomos
até o ranchinho do homem, é mito triste ver uma moradia
abandonada, ainda mais naquela circunstância, fomos
entrando e vimos os gambás comendo as bananas já maduras
nos vários cachos num canto da taperinha, elas já não tinham
mais serventia ao dono. No caixote que servia de armário lá
estava a fotografia do casal tirada em 1964. No cabide
improvisado estavam as várias peças de roupas que eu tinha
levado a ele, já fazia seis anos, estavam limpas e dobradas o
que atestavam que os dois velhinhos eram organizados. Não
entendi porque a Dona Lila não levou aquilo embora, acho
que nem voltou mais naquele lugar. A foto peguei de volta já
que tudo ali estava abandonado. Saímos dali muito tristes,
logo veio a lembrança das tardes que pescávamos ali em
frente e víamos a fumaça saindo pelo teto da tapera, o Renato
sempre dizia fosse quantas vezes estivéssemos por ali: “a
velhinha está cozinhando a jantinha deles”.
A cena era bucólica, até triste, mas a mesmice do
Renato ao proferir sempre a mesma frase era porque ele não
conseguia exteriorizar algo mais condizente com aquele
quadro.
Passados alguns dias o Nisio foi para o Piúva com seu
pessoal, o Carlinhos, aquele, colocou fogo no rancho do
velhinho e ninguém o impediu. Estava destruída uma
vivenda de mais de 50 anos até então esquecida naquele pé de
serra isolada de tudo.
Depois que o Carlito do bananal morreu, apareceu no
bananal um tal de Bóqui que estava cortejando a viúva
Angelina. Era um sujeito ignorante, prepotente, ele chegava
no casarão onde morava o Seu Cristóvão e intimava o homem
a atravessá-lo com o barco para o outro lado do rio, chegava a
dizer que estava com pressa e queria rapidez, jamais deu
algum presente pelo favor do Cristóvão, alias nem
cumprimentava ninguém, pelo menos duas vezes eu observei
isso. Nunca imaginei o que ele viu de atrativo naquela
mulher, magrinha, parecia a propaganda da fome na Nigéria,
também entrada nos anos de vida, talvez ele fosse um tanto
apetitado…
Eu já tinha alertado nosso velho para não se meter com
aquela mulher, o tal Bóqui já tinha dado uma sova no Pifâni
por causa dela. O meu alerta para o velho era porque
fatalmente ele iria dar em cima da mulher, não perdia ocasião.
O problema de fim de ano naquele rio era as enchentes
que nunca falharam, o Alvino, Ludovico, Renato, Roberto e o
pai deles passaram por um mau pedaço naquele barraco por
causa da enchente. Como chovia muito resolveram levar o
carro para o posto de gasolina na Pedro Taques. Voltaram ao
rancho, o Renato sempre comentava a agonia porque
passaram. Sempre chovendo, jogaram baralho até o começo
da madrugada e foram dormir. Mais tarde o Renato se
levantou, ao saltar do beliche já caiu com água até o tornozelo
dado a alarma trataram de sair dali.
O Alvino e o Ludovico eram altos e sabiam nadar, os
outros três além de não saberem nadar eram baixinhos, em
qualquer lugar mais baixo se afunhacariam todos… O jeito foi
rebocá-los nas partes mais fundas, foram para o posto de
gasolina onde passaram a madrugada cochilando no carro.
No bar do posto conheceram o jornalista Nelson Gatto10 que

10 Nelson Gatto: era jornalista dos Diários Associados e, antes da revolução, foi
transformado em Chefe do Departamento de Repressão ao Contrabando em São
Paulo. Quando foi dado o golpe militar, conseguiu fugir disfarçado de padre.

cismou que o Renato era parente do presidiário Pereira Lima
que fomentou o Levante da Ilha Anchieta onde morreram
dezenas de pessoas, os sobrenomes eram idênticos.
Eu e o velho também passamos maus bocados com
uma enchente naquele rancho em 1979, quando percebi que o
rio estava enchendo com a chuva de vários dias tratei de ir
embora, mas a valeta ao lado da estrada já estava jogando
água para fora e enchendo todos os locais baixos, o jeito foi
voltar ao clube, consegui fazer uma rampa com muita brita
que havia por ali desde o tempo da construção do casarão,
coloquei uma prancha enorme por cima das pedras e subi
com as rodas de um lado sobre o terceiro degrau da escadaria,
do outro lado ficaram sobre a rampa improvisada. O carro
ficou a salvo, a água chegou ao nível do motor, mas alagou
por dentro, tive que trocar parte do tecido das laterais.
Dormimos no clube por quatro dias até baixar a água. No
auge da cheia fomos de barco até o rancho e ficamos
arrepiados com o que vimos, a água estava quase passando
pela janela, saltei do barco e entrei no barraco, o fogão estava
no meio da cozinha com o tambor flutuando além das panelas
da parte de baixo do armário. Com o rio já baixando fomos
tentar localizar as redes, só achei uma toda rasgada com
muito lixo e peixe podre.
A Angelina que passou no clube disse que a maior
cheia que ela presenciou naquele rio foi em 1953, ela morava
ali já há 40 anos!
Depois fui com o velho fazer a limpeza do rancho,
baldeamos mais de 100 litros d’água daquela valeta ao lado,
tinha muito lodo lá dentro. Quanto a Angelina a mulher era

entregou posteriormente. É autor no livro Navio Presídio “Outra Face da
Revolução”, entre outras obras.

atirada, ele chegou a visitar a Dona Elza e Seu Cristóvão no
sítio em que moravam em Cesário Lange.
Depois que o Seu Cristóvão se mudou do casarão
chegou o negro Zelão. Nosso velho logo se enturmou com ele,
até pescavam juntos, os dois gostavam de perambular pelo rio
com o barco. Iam fazer compras no povoado de Melví pouco
acima da margem do rio Preto, caso fossem a pé pela estrada
economizariam umas duas horas e meia, mas o que para eles
valia era a aventura. Esse rio Preto afluente do rio Branco
nascia também na encosta do morro, eu e o Tarcisio pescamos
nele com espinhel e rede e não pegamos nada, foi ali que
vimos uma lontra perseguindo um peixe bem grande e
branco, depois topamos com ela comendo ele na beira de uma
prainha, acredito que fosse um Parati.
Contava o velho que certo dia em que ele e o Zelão
desciam o rio vindos do rio Preto, ele remava o barco
beirando o barranco quando o Zelão disse a ele: “é melhor
você remar mais para o meio do rio porque tem uma cobra em
cima de nós pendurada no galho e está com jeito que vai se
jogar dentro do barco”. No que o velho olha pra cima viu a
danada se balançando com ares de que ia mesmo se atirar
sobre eles. Foi remada para todo lado, conseguiram sair fora
da cobrósa e o que enervou nosso pai foi a calma do Zelão, o
tempo que ele perdeu em alertar o velho quase deu tempo
dela cair dentro do barco.
O Renato tinha me contado caso semelhante acontecido
com eles. Ao passarem debaixo de uma árvore a cobra se
atirou dentro do barco, como estavam calçados com botas
sapatearam sobre ela matando-a. Dizia que o medo fez com
que sapateassem de tal modo que fariam inveja ao Fred
Astaire, aquele do dançando na chuva. (isso foi por minha
conta).
O Alvino e o Mingo também passaram maus bocados
com uma cobra que atravessou o rio e veio direto para os
lados deles, foi na prainha do outro lado do rio frente ao
nosso porto. Como não tinham nada para se defenderem
bateram nela com a vara de pesca, como ela é flexível não
ajuda muito, mas conseguiram quebrar sua espinha que já é
meio caminho para liquidá-la. Dizia o Alvino que o bicho
tinha quase dois metros e presas de uns dois centímetros. O
Seu João já tinha me falado sobre esses monstrengos que
habitam charcos e beira de rio, dizia ele que é a Jararacuçu
Dourada. O Seu Cristóvão matou duas delas no casarão e o
Mario do pão já tinha matado uma na sua varanda. O
Alexandre, aquele, fez uma barraquinha na beira do rio onde
esperava a caça, um desses cobrões cismou de entrar lá dentro
colocando-o para correr. O Zé Preto contava que teve que
correr muito de uma Urutu na beira do rio. Aqui abro um
espaço para uma afirmativa. Freqüentei aquele rio por 22
anos, várias vezes fomos até o outro lado da montanha, até o
Seu Antonio do rancho dos Compadres nos acompanhou
certo dia que ele disse que tinha visto muito porco do mato no
outro lado da serra, também não vimos os tais porcos. Eu ia
com os amigos a procura de palmito no varjão da beira do rio,
também com o pessoal do Alvino fomos por lá certa vez a
procura de palmito, fui pescar naquele rio mais vezes do que
qualquer outro da nossa turma incluindo o Nisio, andávamos
por aqueles trilhos a noite, madrugada, sol forte e chuva,
chegamos a pernoitar na cabeceira do rio onde dormimos
sobre uma pedra. Íamos tomar cerveja no bar do posto a pé e
retornávamos de madrugada.
Com o Tarcisio fomos tomar conhaque no Chaparral
uma noite gelada, só retornamos de madrugada e isso a pé
porque não tínhamos carro. Nas noites quentes íamos tomar
banho na prainha do outro lado do rio, levávamos uma caixa
de isopor com cerveja, pendurávamos o lampião nun galho e
ficávamos ali até as tantas. Posto isso vou explicar porque
tanta ladainha, jamais vi uma cobra sequer naquela região,
porque fui poupado de topar com tais bichos horrendos que
me expliquem os sabichões.
Quando menino sofri muito com esses bichos, caia a
mim cortar capim para os cavalos que dormiam presos no
curral vez ou outra eu pisava numa cobra ou trazia alguma no
feixe de capim. Cheguei a pisar de chinelos sobre uma
Jararaca onde ela ficou achatada no barro, eu nem tinha visto
a cobra. Cheguei a ser mordido no dedão do pé por uma
cobra não venenosa, ela não pica, morde já que tem seus
dentes em forma de uma serrinha. Fiquei com o dedão
inchado por alguns dias. No Araguaia íamos pescar nos lagos
e tínhamos que arrastar uma canoinha por uns 300 metros, era
só atoleiro e capim alto, às vezes até corríamos de algum
jacaré que estava chocando (na verdade ele não choca, o que
ele faz é tomar conta da ninhada).
Nunca vi uma cobra sequer, na última vez que vi uma
Jararaca de uns 12 centímetros eu estava com o Alvino,
Nenzico da fazenda dos botes e o Jean, descemos do barco e
subimos o barranco, todos passaram ao lado de uma latinha
de cerveja que estava jogada ali e não viram a cobra
enrodilhada ao lado da lata. Eu de longe subindo o barranco
avistei a bicha, o Nenzico a matou e jogou no rio.

O Butantã diz que o índice de picadas por cobras mais
alto no Brasil, 56%, são justamente as Jararacas daquele tipo
que é a mais comum, todos passaram por ela sem vê-la. Eu
tenho fama de ser espeleoteado e realmente o sou, tocou de
ser previdente garanto que sou o melhor… Tenho saudade dos
tempos que pescava com o pessoal do Alvino, mas saudade
maior tenho dos tempos que eu ia com os companheiros de
serviço, foram muitas as loucuras naquele rio e também no
mar, mas sempre tínhamos peixe para comer no barraco. No
tempo dos companheiros de trabalho o velho já morava no
Piúva, ele gostava de ver a turma chegando sempre fora de
hora, saiamos às 23 horas e chegávamos um pouco antes da
meia noite. O velho sabia que não teria mais sossego, mas
também sabia que ia se divertir muito. O pessoal gostava dele
e sempre levava doces e refrigerantes ta ao gosto dele.
Algumas vezes íamos pescar picaré11 ou no Caiçara ou
na Vila Mirim, isso de madrugada, numa dessas vezes
pegamos muito camarão e siris, fizemos um risoto e
convidamos o Mario e a Dona Maria para ir provar aquilo já
que eles falavam que nunca comeram nem camarão e nem
siri. Gostaram muito. Nosso velho gostava de fazer um arroz
para o pessoal, gostava de se sentir útil, o arroz dele era papa
eu não gostava daquilo, mas como fritávamos uns camarões
quando chegávamos da praia e reforçado por umas tantas
caipirinhas o arroz papa era todo consumido.
No rio Branco peguei vários robalos, os três maiores
foram no espinhel, alguns nas redes e vários foram pescando
com vara usando como isca camarão bem rio abaixo. Junto
com o pessoal do Alvino pegamos alguns.

11 Picaré:objeto utilizado pelos pescadores, uma rede de arrastão.

O Nisio algumas vezes me emprestava à chave do
rancho e eu ia para lá com os companheiros de serviço.
Pegamos alguns robalos interessantes naquele rio, o maior
pesou 5,5kg, um outro menos de 4kg e alguns variando entre
um e dois quilos. Nós pesávamos os peixes na balança do
armazém do posto de gasolina. Quanto ao maior eu peguei
por acaso, fui com a Maria, o velho e as meninas passar uma
noite naquele rancho, acontece que esqueci o espinhel em
casa, improvisei uma linha grossa onde amarrei anzol de todo
tamanho, isquei com sardinha e estiquei aquilo um pouco
abaixo nosso porto, na manhã seguinte sem nenhuma
esperança de pegar alguma coisa com aquele improviso, fui
revistar os anzóis, estava procurando a linha quando a Vânia
gritou que tinha um peixão debaixo do barco, era o robalo
maior.
Pelo menos duas vezes fui pescar com o pessoal do
Nisio, tempo bom, pois ainda não tinham as intrigas, aquelas
picuinhas. Posso dizer sem medo de errar que tais intrigas
começaram depois que comecei a pescar no rio Araguaia, isto
desde 1980, tenho certeza disso, nunca fiz mal a nenhum
deles, eu até sei porque as tais intrigas, mas vamos esquecer
isso que não leva a nada. Era só aquele pessoal ter cara e
coragem como eu tive e meter a cara por esse Brasil afora. Se
tivessem um pouco mais de humildade teriam conversado
comigo para virmos todos pescar no Araguaia e conhecer
mais alguma coisa. A conduta que seguiram foi terrível.
Curiosamente eu nunca soube porque o pessoal do Evaldo
nunca foi pescar no Piúva, eram nossos companheiros de
tantas pescarias. Nunca freqüentaram aquele rancho.
Vez ou outra alguns deles foram lá, o Evaldo e o
Haroldo pelo menos foram uma vez. O Ferdinando me disse
que já tinham ido pescar naquele rio e depois foram para a
praia, mas eu não lembro disso. Aquele pessoal era fora de
série hoje só o Mimo e o Sílvio ainda estão por aqui.
Mas como esta crônica é para relembrar o passado, me
veio a lembrança de uma espécie de vaporzinho que certa vez
vi na represa, só vi aquilo uma vez e foi na balsa, era tudo
preto, uma espécie de lanchão que parecia transporte de óleo,
bem grande, nunca soube o que seria aquilo. Também não tive
iniciativa de perguntar ao Barbosa o que seria aquilo. Eu
atravessava a balsa e rodava muitos quilômetros e chegava a
outra balsa, também nunca soube o nome daquela localidade.
Coisas que ficaram perdidas e só agora nos demos conta, que
pena…
Um detalhe do Piúva que não posso esquecer, aquele
barco adquirido por último e tanto deu o que falar ao
Ludovico, na verdade foi pago pelo Alvino, eu encomendei
sua construção a um carapina12 lá do Estoril e paguei pelo
frete, o Nisio foi comigo numa madrugada levá-lo até o
rancho. Estou relatando isso para se fazer justiça sobre a
procedência do tal barco que chegou a ser o pivô da celeuma
provocada pelo Ludovico. Engraçado, o rico briga pela
partilha de milhões de reais envolvendo sua sociedade, o
pobre miserável briga por uma ninharia de algumas centenas
de reais que ele nem sequer injetou dinheiro na pendenga.
Numa dessas pescarias participaram: Nisio, Ludovico,
Irte Caboclo, Marcio, Carlinhos, Valter, Mario, um
companheiro meu e eu. Aquele pessoal era sempre o mesmo.

12 Carapina: Carpinteiro.

Nessa pescaria ficamos três dias no Piúva, quem me
convidava era o Marcio que até então tínhamos uma boa
amizade. Engraçado, o Alvino nunca participou dessas
pescarias com o pessoal do Nisio. Mas nessa pescaria
pegamos muito peixe, uma variação como nunca tínhamos
visto. Robalo, tainha, bagres, traíras e até um cará enorme e
três paratis de bom tamanho.
Na primeira noite pegamos uns oito peixes dos bons, o
Ludovico fritou-os no almoço do dia seguinte. Tínhamos
levado um garrafão de vinho, foi uma das pescarias que
jamais esqueci. Foi ali que conheci o Caboclo irmão do Nisio,
um sujeito fora de série. Logo eu estava de volta com aquele
pessoal, o Nisio que era o dono do Piúva disse que o barraco
estava precisando de uma reforma, mas ele não ia mexer com
aquilo.
Em outra pescaria o Ludovico disse que o Nisio falou
aquilo por causa dos penetras. De fato o rancho estava
necessitando de uma boa reforma. Ora, eu também era um
penetra ali, porque ele não jogou aberto? Cobrasse de todos
uma ajuda o que seria muito justo.
Mas comunicação nunca foi o forte daquele pessoal,
isso eu comprovei ao longo dos tempos, preferiam o disse me
disse que é uma característica das pessoas pequenas, pessoas
sem um caráter consistente.
Caso falasse com o pessoal, daríamos um jeito na
situação como demos mais tarde. Com isso passamos a
freqüentar o rancho do Picoli que era como o Mingo certa vez
falou, esse homem era igual a cabelo de freira, existia, mas
nunca ninguém viu.
Mas quem liberava para nós o rancho do tal Picoli era o
Mário que tinha a chave. Aquele barraco era muito bem feito,
mas eu não gostava dele, não era arejado, muita mata em
volta, e com a agravante de ficar no fundo da casa do Mário,
todos tinham bronca de ver logo cedo a Dona Maria ou o
Mário ou os dois juntos dentro da cozinha para ver o que
comíamos no café da manhã. Alguém sugeriu que
levantássemos pelados que assim ela sairia correndo dali, mas
um outro emendou que aí sim ela não sairia mais de lá.
Coitada, quanta maldade.
Em pouco tempo eu e o Valter que na verdade era seu
pai, compramos o Piúva, juntos eu, o Alvino e o Ludovico
entramos com 200,00 cruzeiros cada, com esse dinheiro eu
comprei a madeira na Volks, o Alvino, Nisio e o Ludovico
reconstruíram o barraco nos fins de semana. A sociedade até
foi bem no início, quer dizer muito bem não, a começar pelos
eis anos de impostos atrasados que encontrei na Prefeitura de
Praia Grande. O sócio nunca se manifestou em ajudar a pagar.
E por aí foi, os anos se passaram, os impostos eram pagos por
mim, o Valter nunca quis saber o quanto ficava.
Mas naquele rancho eu fiz uma inovação, o Piúva
antigo tinha um fogão à lenha, era difícil achar lenha ali perto,
sem contar que ficava estocado debaixo do fogão o monte de
lenha juntando aranhas e cobras. Eu com o Tarcisio matamos
duas numa noite, eram caranguejeiras do tamanho de uma
mão grande fechada…
Sem contar que ficava mais difícil lavar as panelas
queimadas no carvão. Então levei para lá um fogão a gás e
dois tambores de gás. Também substituí os inoperantes
candeeiros pelo lampião a gás. No início o Ludovico levava o
dele, mas logo levei dois para lá e ele achou ótimo, recolheu o
dele.
Mas as pescarias naquele rio variavam com a maré, na
cheia do rio não pegávamos nada, dizer que o rio era
excelente para pegar peixes era um certo exagero, mas
também não era tão ruim, vamos dizer que era regular.
O motivo da má pescaria talvez fosse pelo fato daquele
rio ser afluente do Casqueiro, tinha muita variedade de
pequenos peixes que serviam de alimentos para os peixes
maiores. Alem de siris, caranguejos e camarões.
Foram várias as pescarias em que armávamos quase
100 anzóis entre espinhel, linhas de galhos e linhadas, fora às
redes, no outro dia ao fazermos a revisão dos anzóis não havia
um peixe sequer, e todas as iscas intactas. Nas redes a mesma
coisa.
Certa vez uns amigos disseram que tripa de galinha era
infalível para pegar bagres, levamos seis quilos da tal tripa.
Iscamos uns 80 anzois no espinhel, fiquei impregnado com
aquele fedor por três dias. Iscamos tudo aquilo já de
tardezinha, lá pelas dez e meia fomos dar uma revisão nos
anzóis e colocar mais tripa caso fosse preciso, fui levantando a
linha do espinhel todo esperançoso, afinal me garantiram que
aquilo era bagre no sapiquá, já na metade larguei tudo e
desisti, nem nas iscas os peixes mexeram. No dia seguinte lá
estávamos novamente, nem os caranguejos quiseram nada
com aquilo nem a eles a tripa apeteceu…
Eu e o Alvino certo dia também apelamos para a tripa
os resultados foram os mesmos, tínhamos descoberto
excelente repelente para peixes…
Um tempo atrás aqui em Goiânia um amigo teve a
idéia de levar tripas para o Araguaia, quando eu soube disso
desisti da pescaria…
No rio Branco nunca consegui pegar um bagre do mar,
o tal cabeçudo. Pescando de vara, peguei um bagrinho de oito
centímetros se tanto, mas era diferente, logo pensei, é o
cabeçudo, mas deste tamanho? Não valeu para dizer que pelo
menos peguei um…

Quando fui para o Piúva com o pessoal do Nisio, levei
um amigo por nome Mário que foi mais para caçar nambu.
Esse sujeito era mesquinho e não caiu nas graças do
pessoal, nem na minha. Eu nunca tinha pescado com ele.
Numa manhã atravessamos o homem no rio onde ele foi para
a serra fazer sua caçada. Na ora do almoço ele estava de volta
com meia dúzia de nambus e um fardo enorme de palmitos. O
Ludovico estava terminando o almoço e o pessoal jogou
indiretas para se fazer uma salada de palmito que até nem ia
fazer falta ao homem. O homem fez que não ouviu aquilo e
guardou tudo no seu carro. Na manhã seguinte tirou um bolo
de sua sacola e colocou na mesa para o café, o Irte que era
gozador comandou um parabéns seguido de muitas palmas, o
homem ficou sem graça.
Mais tarde ele perguntou a mim o motivo da gozação,
eu fui sincero com ele, falei que para se enturmar com aquele
pessoal precisava falar a mesma língua deles… Ninguém
comeu o bolo, só eu, também nunca mais falou de voltar
naquele rancho.
Depois o Caboclo pediu para que eu nunca mais
levasse o tal Mário naquele rancho. Ele estava mais do que
certo afinal o rancho era deles. Mas, durante essa conversa, o
Nisio aproveitou o gancho e disse que também não gostava
do Alvino, questionei o homem por qual motivo, ele só disse
que era coisa dele e que deixasse pra lá… Também estranhei o
Ludovico que estava ao lado e não defendeu o irmão. Certo
dia tentei dizer isso ao Alvino, mas com cisma de alimentar
fofocas deixei para lá. Coisa do Piúva.
Nós tínhamos alguns companheiros naquele rancho
que eram bem ruizinhos. O Valter mocorongo era um deles,
não prestava para nada, o tal Bértico ia para caçar passarinho
com gaiola, nunca vi o homem dar uma mão nos serviços da
cozinha. O Renato também não ficava atrás. O Bastião era
neutro, muito divertido, alegrava a todos. Se bem que ele não
ia com a minha cara.
Estávamos pescando no porto do Seu João quando
ouvimos um estampido de espingarda, logo surgiram o Valter
e o Márcio com minha espingarda que pegaram sem ordem,
tinham matado um ouriço cacheiro que é inofensivo, logo o
animal estava boiando na beira do barranco. Fui obrigado a
ser ríspido com eles, pois poderiam ter acertado alguma
pessoa naquele rio, o Ludovico não falou nada ao filho, era
mais fácil se doer com minha bronca do que chamar a atenção
daquele retardado.
Quando começamos a freqüentar o rio era comum
toparmos com capivaras e até lontras, eu e o Tarcisio vimos
uma lontra capturando um parati e depois comê-lo no
capinzal da beira do rio. Com a chegada do Alexandre tudo
aquilo terminou, o que ele não matou fugiu para bem longe
dali. Esse safado amargou uns tempos da cadeia, o homem
saia a tarde para caçar e levava sua filha de uns 12 anos junto
com ele, quando apareceu grávida ficou fácil saber quem era o
pai, nós sempre comentávamos sobre aquele negócio, alguma
coisa estava errada com aquele homem. A Ismênia me contou
esse caso que ela ouviu no programa do Gil Gomes em 1986.
Voltemos ao Zelão, o homem dizia que o patrão não
pagava nada a ele par tomar conta do clube já fazia meses.
Como ele se virava para comer, fumar, beber sua pinguinha
nunca soubemos, muitas vezes nosso velho e o Naldo dava
uma ajuda a ele.
Uma passagem engraçada envolvendo os dois velhos
foi no tempo que nosso pai tinha a mania de caçar gambás, o
Nisio tinha deixado uma gaiola no Piúva e o velho se apossou
dela. Pegava o bicho e depois soltava, pura curiosidade. Ele
armava a gaiola no outro lado da valeta a noite, ele ficava na
espreita, como ele não dormia a noite já que passava o dia
todo dormindo, ficava num deita e levanta que até irritava a
turma. Ele tinha a mania de levantar para comer alguma coisa
de hora em hora por muito tempo ficou a gozação, quando
alguém o percebia levantando já falava: “lá vai o aviãozinho
da Vasp…”.
Mas ele ficava olhando pela fresta da janela para ver
quando o bicho caia na armadilha. Quando estávamos por lá
era infalível ver o velho vigiando a gaiola na madrugada. Seu
maior sonho era capturar uma jaguatirica que até tinha muitas
por ali, o Mário já tinha perdido algumas galinhas mortas por
ela. Numa dessas madrugadas o velho percebeu que tinha um
bicho preso, mas tria que esperar o dia clarear, nós sabíamos
muito bem que depois que escurecesse jamais ele sairia
daquele barraco, nem que a Tiazinha estivesse fazendo um
streap tease do lado da gaiola.
Deu para imaginar sua ansiedade. Logo que o dia
clareou pegou a gaiola colocou nas costas e foi a procura do
Zelão para mostrar a “jaguatirica”. Nem precisou chamar o
homem que também era madrugador, lá veio o Zelão todo
empertigado com ares de quem entendia de felinos. Na
verdade ele entendia menos que nós, ele mesmo dizia que foi
criado na beira do mar.
O homem abriu a portinhola da gaiola, deu uma bicada
franziu o cenho13, meditou um pouco para se assegurar do
estava vendo e caiu na gargalhada, o nosso velho ao lado sem
entender nada do que estava acontecendo, até que o Zelão
falou: “você pegou o gato da Dona Maria”, abriu a portinhola
da gaiola e o gato desembestou estrada afora… Foi com um
sorriso amarelo que ele teve que tolerar a gozação do Zelão.
Depois que esse homem foi embora do casarão nunca mais
morou alguém por ali. O tal clube ficou abandonado até sua
depredação. Foi ruim para meu pai o Zelão ter partido, a
solidão ali era muita um companheiro ajudava a passar o dia
com suas conversas fiadas e talvez sem nexo.
Quando eu estava por lá o Zelão sempre aparecia para
uma pinguinha e um bom bate papo, muitas vezes eu e o
velho depois da janta íamos para o clube onde ficávamos até
as tantas na conversa. Ali ficamos sabendo que o Zelão tinha
sido abandonado pela família que ele nem imaginava por
onde andavam. Talvez isso fosse conseqüência do vício da
pinga…
Numa noite jogávamos dominó, eu com o Lilo e o
Alvino com o Zelão. Era mais divertido assistir aquele jogo do
que jogá-lo propriamente dito, o Alvino puxava uma ponta e
o Zelão colocava uma pedra matando essa ponta, o Alvino
repetia a jogada novamente e o Zelão quebrava a ponta
desfazendo o jogo do parceiro, até que o Alvino perdeu a

13 Cenho: Rosto, semblante.

paciência: “nós somos parceiros Zelão, e você só joga na
minha ponta”, foi então que o Zelão com ares de quem tinha
entendido o espírito da coisa gritou bem alto: “mas você não
tinha me avisado…”. O coitado não entendia bulhufas de
dominó, ele somente juntava as pedras.
Contava o Nisio que numa casa ao lado do rancho dos
Compadres morava uma família onde tinham duas mocinhas
dos seus 13 e 14 anos. Ele nunca tinha visto nada de mal com
elas, mas de um certo tempo ele notou uma súbita paixão pela
pescaria por alguns funcionários de sua fábrica de móveis.
Toda semana faltava um ou outro, até o Irte seu irmão e sócio
na firma vez ou outra dava o cano no trabalho. Numa
segunda-feira, notou que o Irte e mais um funcionário
faltaram ao serviço. Foi até a casa do Irte ver o que aconteceu,
sua mulher disse a ele que o homem tinha ido pescar no
Piúva! Pescar em plena segunda-feira estava um tanto
esquisito a não ser que fosse por alguma coisa que realmente
valesse o sacrifício da vigem, ir ao Piúva de ônibus não era
nada fácil, o Irte não tinha carro. Então o Nisio resolveu dali
mesmo ir para o Piúva, nas proximidades do rancho desligou
o motor para não alertar os homens caso estivessem mesmo
por lá.
Encontrou o barraco trancado, mas as janelas estavam
abertas, o Piúva antigo não tinha frestas na parede onde se
poderia ver o que acontecia lá dentro, então o Nisio trepou
numa janela que por sinal era muito alta, no que olhou lá
dentro ficou estático, numa das camas lá estava o Caboclão
mandando ver numa das meninas, o companheiro deitado
noutra cama vendo a garota dançar pelada no meio do quarto
toda prazerosa.
Dizia o Nisio que com a raiva que estava nem mediu as
conseqüências e se jogou daquela janela alta caindo no meio
do quarto que por pouco não se afunhacou como ele gostava
de falar. Aí o bicho pegou pros caras, as duas meninas vendo
aquilo saíram correndo nuas mesmo, o Nisio começou a
colocar fogo nos colchões. O Irte conseguiu acalmá-lo, mas ele
acabou com aquele Rends Vouz que estava se transformando o
Piúva. Eu fico imaginando se aquilo fosse nos dias que nosso
velho morou por lá, com toda certeza absoluta e insofismável,
aquele barraco ia pegar fogo, ah se ia…
Aquele lugarejo só dava a impressão que era tranqüilo
pois sempre havia alguma novidade para quebrar a
monotonia. Nos bons tempos que freqüentávamos o rio
Branco dificilmente encontrávamos alguém pescando por lá.
Eu tinha folgas grandes de até três dias e meio pelo menos
uma vez ao mês, e mesmo nas férias que eu assava uma
semana naquele rio eu jamais via uma pessoa sequer
pescando por ali. A não ser o Alexandre que armava suas
redes e logo ia embora. Uma única vez que topei com dois
Florestais que subiam o rio.
A Vânia e a Lúcia guardam boas recordações daquele
lugar, eram as balanças nas árvores que fazíamos, as fogueiras
das noites frias onde assávamos batata doce, os passeios na
cachoeira que formava o rio Branco, os banhos na prainha, as
brincadeiras no vagonete que rodava sobre trilhos no sítio da
Angelina lá no bananal, também íamos muito na praia da Vila
Mirim ou Caiçara. “Foi bom enquanto durou”.
Certa vez perguntei a Dona Vitória que morava na
subida da serra, se ela já tinha visto onça por lá, disse a
mulher que nunca tinha visto, mas a noite passava um bicho
no terreiro dando uns urros feios… Não precisou falar mais
nada.
Sempre encontrávamos àquela senhora pescando no
antigo portinho do Seu João. Pegava um monte de peixes
pequenos que comiam cosidos em água e sal, nem óleo tinha
para fritá-los. O único medo dela eram as urutus que
encontrava na beira do rio.
Durante uma caçada de nambus que fiz com um amigo,
ou melhor, o acompanhei já que era o caçador, encontramos
com um sujeito que descia o morro, como ele viu a espingarda
pediu a nós que não matássemos seu porco! Como não vimos
nenhum porco achamos que o homem não batia bem, nisso o
companheiro atirou num nambu, o camarada apareceu
correndo todo afobado esperando ver o tal fuçador esticado
por ali, nesse meio tempo surge o porquinho fazendo uma
festa ao dono idêntico a um cachorro… Seguia o homem pra
todo lado.
O João ladrão era enteado do Inaldo que moravam ao
lado do rancho dos compadres, um certo dia ele me procurou
e pediu para que eu levasse embora o velho, disse que os
companheiros dele queriam roubar o relógio e o revólver que
eles sabiam que o velho tinha. Eu já tinha avisado o nosso pai
para que não desse na vista que ele tinha aquele revólver, mas
esse João era ladrão e maconheiro sabido por todos. Disse que
estava me avisando porque não queria levar a culpa por algo
que ele não devia. Na verdade ele não era nada amigável,
falava com as pessoas olhando para o chão, tinha fama de ser
perigoso e muito ruim.
Eu tinha certeza que ele preferiu me alertar para não
correr risco de ter que enfrentar uma situação que ele sabia
que seria indigesta. Ele já conhecia a turma que pescava
comigo, certo dia vínhamos do rio, éramos uns oito
companheiros do bombeiro, ao passarmos em frente a casa
desse João um dos caras cismou de atirar numa cabaça que
estava pendurada numa moita, foi só o primeiro dar um tiro
que logo mais cinco estavam atirando na cabaça. Foi um
tiroteio dos diabos, o João sentado na porta da sua casa
assistia a tudo, ora, ali eu era o sargento, depois o Ronaldo me
disse que o tal João ficou apavorado com aquilo, dizia ele que
aquele bando era do esquadrão da morte…
Anteriormente eu já tinha alertado o Ronaldo, que se
acontecesse algo com meu pai eu levaria para lá uma turma
da pesada e justiçaria uem encontrasse pela frente. Talvez foi
por isso que o velho conseguiu sair daquele rancho ileso, ele
morou por ali muito tempo.
Mas aquele aviso do rapaz me deixou arrepiado, não
deixamos mais o velho ir para o Piúva sozinho. O velho José
gostava de falar que: “ele morava onde não mora ninguém”,
uma alusão à música do AGP.
Tempo atrás tínhamos sido roubados naquele rancho.
Saímos cedo para o rio, ao retornarmos notei que haviam
algumas tabuas arrancadas. Levaram minha calça com algum
dinheiro no bolso, o rádio, relógio e os chinelos do velho,
lampião de gás e a bolsa do nosso velho. Devido a minha
previdência escaparam o gravador que a Neusa tinha me
emprestado, nossos revólveres e a carteira com documentos e
dinheiro. Isso tudo eu tinha escondido bem no canto do
beliche de baixo. Fui até o posto de gasolina onde alguém me
falou que o Ronaldo junto com um negrão tinham passado
logo cedo para o rio. Os canalhas sabiam que sempre tinha
alguém naquele rio. Nesse tempo o Mário já tinha se mudado
dali, mas ninguém sabia para onde, perguntei a umas dez
pessoas sem obter informações.
Rodei uma manhã toda, já estava para desistir quando
vi o Alexandre sentado na porta de uma casa na Vila Caiçara,
o homem era caseiro de veranista. Mas, o homem também não
sabia o paradeiro do Mário, mas deu mais ou menos o roteiro
que eu tinha que fazer para encontrá-lo. Deu certo, o Mário
morava ao lado da via férrea, uns 15 quilômetros distantes do
posto da entrada para o rancho. Lá chegando o Ronaldo se
escondeu atrás do chiqueiro, corri e o segurei. Ele negou que
tivesse estado no rancho, tive que endurecer nossa conversa
“amistosa”. Ele confessou e me levou até onde guardavam os
produtos dos roubos.
Fiquei com dó do casal de velhos, quando me viram em
sua casa pensaram que fosse uma simples visita, nossa
amizade era muito boa, mas quando contei o motivo da
minha visita eles choraram. Lamentaram-se, diziam que o
outro neto era muito bom, mas o Ronaldo não valia nada.
Fomos até o barraco de madeira onde eles tinham produtos de
seus roubos que era muito coisa, ficava num matagal distante.
O Ronaldo me alertou que o comparsa atirava se me visse ali.
Nem liguei para aquilo eu queria reaver meus pertences.
Como não havia ninguém no barraco, arrombei a janela e o
rapaz entrou para pegar nossos objetos. Deixei o velho
vigiando para evitar surpresa. Com tudo isso perdi a calça
que já estava desmanchada pela mulher do ladrão, o pouco
dinheiro que estava no bolso, o relógio Oriente e os chinelos
do velho…
Fiquei de tal modo indignado com aquele rapaz que
conhecíamos desde seus nove anos, que fiquei com vontade
de atirar nele ali mesmo. Larguei ele no barraco do negrão e
fui até a casa do Mário onde pedi desculpas pela visita
intempestiva. Quanto ao Ronaldo eu fiz a ele uma ameaça
bem clara: “nossa amizade termina aqui, se te pegar no rio
vou entender como uma provocação e não vou te dar a
moleza que você teve hoje…”.
Muito tempo depois perguntei ao Inaldo e sua mulher
se o Ronaldo ainda aparecia por ali, disseram que sumiu.
Quanto ao Mário e a Dona Maria, nunca mais tive notícias
deles, aquele pessoal era de Campinas, logo que se mudaram
para o rio Branco o Mário teve que ser operado do estomago,
isso foi em Campinas, quase morreu.
Pelo tempo que já se passou, aquele casal deve estar
repousando o sono eterno em algum pequeno cemitério da
região. Quanto ao Alexandre a última vez que conversei com
ele foi em 1983, estávamos no rio quando ele passou de barco,
até dei a ele a notícia da morte do nosso velho. Depois foi em
1986, a Ismênia me telefonou em Goiânia dizendo que ele
estava preso elo envolvimento sexual com sua filha menor, ela
ouviu no Gil Gomes.
Para mim e para o velho as pescarias naquele rio foram
diminuindo, éramos os dois remanescentes do antigo grupo
de pesca do Alvino. A turma antiga já tinha abandonado o
Piúva. A última pescaria daquele pessoal foi em 1981,
participaram da “saideira”: Alvino, Ludovico, Bastião, Mingo,
Lilo, nosso velho e eu. Até tenho uma gravação onde o Bastião
cantou algumas modas e vários casos…
Foi uma despedida melancólica, houve discussão onde
notamos o quanto os ânimos estavam acirrados contra mim…
Bem disse o Mingo, não sei porque discutir por uma
ninharia a toa que era aquele rancho. Concordo com tudo que
ele falou, o rancho bem como o terreno não tinha nenhum
valor comercial e jamais aquele lugar vai ser valorizado.
O valor daquilo estava bem acima do que ele pudesse
valer monetariamente, os bons momentos que passamos ali,
as reuniões do pessoal no tempo que ainda eram “puros” com
boas pescarias, ah meu amigo, isso não tinha dinheiro que
comprasse…
O Ludovico antes de querer falar alguma coisa que ele
supunha que estivesse errada naquela nossa sociedade,
deveria por a mão na consciência e se tocar que ele estava
fazendo um papel mesquinho e tolo, pois estava se divertindo
no rancho há muito tempo onde tudo que havia lá dentro era
meu e do velho, o velho que ele tanto criticava por morar
naquele barracão humilde e sem segurança. Só os dois, ele e o
Valter que tinham uma cabeça muito pequena não percebiam
que o velho era um guarda daquilo, depois que retirei o velho
dali roubaram tudo, começando pelo barco que sempre tive
minhas suspeitas… Será que roubaram mesmo? Ou deram um
fim nele?
Tudo que estava lá dentro era meu, fogão, dois
tambores de gás, dois lampiões, talheres, panelas, toalhas de
mesa, sem contar que eu comprava arame para refazer a cerca,
pintura de barco e até pintamos o barracão pelo menos uma
vez. O velho mantinha sempre carpido o terreno, a única coisa
que não levei foram às espumas que serviam de colchões.
O tal Valter e seu pai nunca me perguntaram quanto
paguei pelo frete que o motorista me cobrou para levar a
madeira para lá e nem quanto paguei pelo frete do motorista
que levou o barco. Também nem quiseram saber quanto
paguei aos dois rapazes que foram para descarregar o
caminhão de madeira. Posso garantir que ficou tudo isso mais
caro do que o dinheiro que ele deu para a aquisição da
madeira. Eu também contribuí com dinheiro para construir o
rancho novo assim como o Alvino também contribuiu. Falar
mal do velho porque morava no rancho era cômodo o difícil
era honrar o pagamento dos seis anos de imposto atrasado do
tempo que ainda pertencia ao Nisio. Também dos impostos
seqüentes que eles nunca se dignaram a pagar. Estou
retratando tudo isso para tirar alguma dúvida sobre quem a
possa ter… Por educação nunca quis cobrar aqueles dois, mas
ficou bem claro como era a idoneidade deles.
Certo dia bem depois que abandonamos aquilo, fiquei
sabendo pela Ismênia que os calhordas não ajudavam nos
impostos porque nosso pai morava no barraco. Liguei para o
Ludovico e dei uma malhada neles, que foi uma pena eu não
ter sabido disso no tempo que freqüentávamos o rancho… Ele
disse que ra mal entendidos que eu era mal criado, eu fui
grosso e disse a ele que mal criado era o C…
Por tudo isso ainda levei a pecha de C. doce, achei isso
uma piada de mau gosto deles… Mas deixando tudo isso para
trás que dá azar e atraso na vida falar de quem não merece
respeito, vamos tocando nosso relato. Eu continuei a pescar
naquele rio, ia com o velho e alguns amigos, em Fevereiro de
1982 meu pai ainda este lá comigo, até levei ele até a ponte da
estrada de ferro, matou saudade dos antigos vizinhos que
eram o Naldo, Alexandre, Bard
poderia ser uma armação engendrada, cara para isso alguns
deles tinham…
Em julho de 1984 fui pela ultima vez pescar no Piúva,
fui com dois vizinhos somente para pescar de barranco.
Fomos até o racho dar uma olhada no que sobrou, Abri o
cadeado, estava completamente vazio até os beliches tinham
levado embora. Também não havia mais graça em nada por
ali. Fomos até o porto, o barco do Albino estava lá
abandonado e podre, resolvi alugar o barquinho do Naldo
para descer o rio, fomos pescar no barranco abaixo do antigo
porto do Seu João, ali era nosso pesqueiro favorito, meu do
Alvino, Ludovico e o Renato, passamos a manhã ali. Pegamos
alguns bagres e tajabas, aquele nosso pesqueiro não falhava, a
tarde viemos embora, paguei o Naldo pelo aluguel do barco,
jamais eu imaginaria que ainda teria que alugar um barco
para pescar naquele rio, lamentável, o Naldo disse que estava
com o fogão do velho e caso precisássemos ele devolveria, dei
a ele o fogão, o que mais poderíamos fazer com aquilo?
Fui até o rancho ver se não havia nada pelos cantos do
barraco que pudesse ter pertencido ao nosso velho, foi ruim
demais a despedida do velho Piúva que tanto marcou para
nós. Dava para “ouvir” o silêncio naquele barraco outrora tão
alegre e cheio de barulho do pessoal, muito triste passar por
uma situação daquela, fiquei perdido nos meus pensamentos
divagando ao acaso por um bom tempo perdido nas
lembranças que ficaram no passado…
Onde antes aquele era um ambiente de alegrias estava
abandonado para sempre. Engraçado nem sei porque me
preocupei em trancar o cadeado da porta, a parede do fundo
já estava com toas as tabuas arrancadas, fiz aquilo
inconsciente mais pelo antigo hábito. Depois já na estrada me
dei conta daquilo, os companheiros riram a valer eu já estava
de mudança para Goiânia marcada.
De um modo ou de outro aquilo deixou saudade,
nunca fui de guardar rancor de ninguém, nem de possíveis
inimigos gratuitos, miseravelmente todo um ciclo estava
terminado. Nesta última vez que estive naquele local, bem no
começo da estrada que dá acesso ao rio uma mocinha de seus
16 anos me parou e perguntou pelo “vô” que ela nunca mais
viu. Eu nunca tinha visto aquela menina, perguntei a ela como
sabia que o velho era meu pai, respondeu que sempre via o
velho comigo no carro, ao lhe dar a notícia que ele havia
morrido saiu muito triste sem ao menos se despedir, coisas do
velho…

Certa vez quase nos demos mal naquele rancho, numa
segunda-feira bem cedo fomos para lá, eu e o velho, como o
carro ficava longe e chegávamos sem barulho não alertamos
uma turma que estava dormindo no barraco. Lá da entrada
notei umas tabuas dependuradas no fundo do rancho, pedi
silêncio ao meu pai, olhei pela fresta da tabua e vi seis
camaradas dormindo espalhados pelo chão do quarto. Sem
fazer barulho abri o cadeado da porta e numa atitude besta e
impensada gritei: “é cana!”.
Mas antes desci o degrau da escada saindo da direção
da porta, lá de dentro choveu bala, me atirei no chão tentando
localizar o revólver do velho que estava naquela sacola velha
e ensebada que ele não largava dela. Ali o homem carregava
chinelo, paletó, lanche, pão, banana, laranja, toalha e bem no
fundo o revólver, até hoje não entendo porque não levei
minha arma. Quando consegui localizar a arma do velho
estava sem balas, ele as carregava no bolso do paletó.
Foi angustiante, os caras lá dentro esperando um
desfecho na situação, tudo isso foi muito rápido, revidei os
tiros, um rapaz moreno usando um polover vermelho e bota
saltou pela janela, caiu e saiu correndo, dei uns tiros pra cima
e ele corria e gritava, abriu uma gritaria feito louco.
Aquilo deve ter causado pânico entre os que ficaram no
barraco, percebíamos que eles corriam lá dentro sem saber o
que fazer. Eles não sabiam onde eu estava sozinho, disse a
eles: “Se saírem numa boa – não vamos atirar”, criaram ânimo
e foram se jogando pelas tabuas que estavam soltas e correndo
para o mato no fundo do barraco.
Dei duas saraivadas de seis tiros cada numa fração de
minuto, aquilo deixou os caras apavorados, depois o velho
perguntou onde aprendi a atirar daquele jeito, respondi: “se
esqueceu que tenho arma de fogo desde os 17 anos?”. Aqueles
vagabundos talvez pensassem que fosse a polícia que esta ali,
ou era mesmo um bando de bunda mole…
Não atirei sobre eles, num julgamento a lei nivelará
você com eles caso te matem… Como deixaram objetos no
rancho chamei a polícia, fiquei aguardando no boi na brasa.
Descendo para o rancho topamos com o bando atravessando a
estrada, os soldados deram vários tiros, nova correria dos
caras, acho que para aqueles vagabundos o Piúva também já
tinha ficado no passado a partir daquele dia… A dose foi
demais para eles. O tenente da Rádio Patrulha ficou
indignado ao saber que o velho ficava por lá sozinho, disse ele
que aquilo era uma temeridade, o índice de crimes para
roubarem pessoas naquela região era muito alto,
principalmente entre os veranistas.
Nós conhecemos o Piúva num tempo que não se ouvia
falar em roubos por ali, infelizmente estávamos fora da
realidade dos tempos… A partir desse dia percebemos que o
velho não teria mais segurança naquele rancho, ninguém mais
teria. Não sei como nunca fomos assaltados naquele rancho,
certo dia estávamos sentados na varanda do Piúva, Alvino,
eu, Renato, Ludovico, Berto, Valter, nisso vieram dois sujeitos
lá da rua e passaram bem entre nós e se dirigiram para o rio,
não cumprimentaram, cabeça baixa e o dois de mau aspecto.
Passados alguns minutos retornaram, ora, aquilo não era uma
rua pública, era uma área particular, no mínimo estavam
sondando possibilidade. Eu até estava armado, mas deixei pra
lá e não disse nada. Caso aquilo acontecesse estando meus
companheiros de trabalho por lá e sempre estávamos
pescando por ali, a merda estava feita, os companheiros não
iam admitir aquela façanha dos caras.
Certa vez o Naldo foi ao rancho nos avisar que vários
indivíduos estavam sondando nossos carros que ficavam na
estrada da rua que dava acesso ao Piúva. Até então isso nunca
tinha acontecido, fomos lá e levamos os carros para frente da
casa do tal Naldo. A partir de então percebemos que já estava
mudado o sistema naquela região. O Mário do pão já dizia
que o local já estava infestado de ladrões, não demorou muito
também o Mário se mudou dali.
Por tudo isso e mais alguma coisa a sorte do velho
estava selada naquele lugar. Seu rincão onde não morava
ninguém estava terminado melancolicamente… Aquele nosso
rancho deveria ser chamado de “Rancho da Discórdia”.
Foram 22 anos que freqüentei aquele lugar, na primeira
vez que ali estive o pessoal era composto pelo seguinte grupo:
Alvino, Benvenuto pai e filho, Alvininho, Evaldo, Ludovico,
Nisio, Zé Robeto, Márcio, Valter, Carlinhos, um amigo do
benvenutinho e eu. Isso foi em 1962, na última vez que lá
estive foi em julho de 1984, andando pelo mato do outro lado
da valeta encontrei uma arapuca já bem danificada pela ação
do tempo, aquilo pertenceu ao nosso velho que adorava pegar
pássaros e depois soltá-los.
Fazia isso para passar o tempo, pois ele nunca gostou
de vê-los engaiolados. Ele fazia isso também com os gambás,
pura curiosidade em ver os bichos de perto.
Depois vasculhando lá dentro notei pendurado num
cantinho do rancho, lá estava um alçapão bem rústico, as
varetas desiguais, mas muito prático na sua utilização.
Aquele alçapão rústico e mal trabalhado bem atestava a
habilidade do velho que muitos gostavam de contestar. A seu
favor ele tinha que nunca foi mateiro, nunca viveu ou
freqüentou mato, muito menos foi marceneiro, o velho
começou a gostar da vida no mato justamente naquele rancho,
já estava com 73 anos!
Aquele pequeno alçapão está comigo pelo menos há 20
anos, pendurei-o na minha oficininha e sempre que estou por
ali me vem a lembrança do saudoso Piúva e seu fiel inquilino,
aquilo deixou saudade apesar dos pesares.
Em 1979 meu pai levou com ele para o Piúva um antigo
companheiro de trabalho, era o Benedito cujo apelido era
Maxuxo, ambos já estavam com seus 75 anos. Esse Maxuxo
ficou no Piúva um dia somente, ele não gostou do lugar.
Chegaram depois do almoço no rancho e o tal Maxuxo quis
conhecer a praia de Vila Mirim. Lá chegando o homem tirou a
roupa e ficou de sunga para tomar banho de mar, nosso velho
só de olho naquela armação do outro esse Benedito era um
sujeito com idéias arejadas, bem falante e ao invés dele ir
tomar seu banhozinho, começou a insistir para que nosso
velho também entrasse na água, ora, todos nós sabíamos que
nosso pai jamais em tempo algum colocaria um calção, ainda
mais para desfilar numa praia, nem em casa ele usava
bermuda ou short, quando ele via algum velho com cabelos
longos ou de bermuda ele logo dizia: “velho pernóstico14…”.
E ele foi contando as peripécias do tal Maxuxo, o velho
andava de um lado para outro todo agitado relatando para
nós o acontecimento no rancho com o tal Maxuxo. Até parecia
que ele via o homem em sua frente, falava e dava bananas a
torto e a direito. Depois rematou: “O Maxuxo depois de velho
virou viado”, foi logo botando uma calcinha de mulher e
andando pela praia, dizia nosso velho que ele ficou
envergonhado de estar junto do sujeito de calcinha, ele nem
sabia o que era sunga, suas cuecas eram enormes.
Chegaram já bem tarde do rancho, no outro dia bem
cedo o Benedito quis pescar, pegaram minhoca e foram para o
rio, ali o caldo entornou de vez, os borrachudos e o calor
fizeram com que o Maxuxo começasse a resmungar daquela
situação, naquele mesmo dia ele se mandou para Santo
André. O velho ainda ficou mais uns dias.
O Maxuxo era meu vizinho no João Ramalho, como o
vi por ali perguntei porque já tinha vindo embora, ele disse
que aquele lugar era sinistro e o fim do mundo… Quando o
nosso pai retornou foi desfiando um rosário das peripécias do
companheiro onde não faltou a sunga. Dizia ele que ficou
abismado com o que viu, quando ele percebeu o homem já
estava de calcinha andando pela praia…

14 Pernóstico: Presunçoso, vaidoso, afetado.

Outro negócio que bateu nos nervos do velho foi que o
Maxuxo ao contar um caso, usava muito a palavra conosco,
aquele negócio de conosco bateu nos nervos do velho, era
conosco aqui, conosco dali e conosco pra cá que não acabava
mais, nosso pai não era dado a rebuscar palavras – com ele era
“nóis mesmo” nada de conosco.
No seu aniversário a Neusa deu a ele um pijama de
presente, um artigo muito bom e caro, mas tinha um pequeno
e simples detalhe, as pernas da calça eram curtas… Ele não
tinha visto isso na casa da Neusa senão nem traria para casa.
Chegando em nossa casa ele foi experimentar o tal pijama,
meu amigo, de repente o homem sai do quarto todo nervoso e
atacado por um faniquito, dava bananas pra todo lado era sua
marca registrada, perguntamos o que estava acontecendo, ele
jogou a roupa sobre nós, nem experimentou quando viu as
pernas da calça curtas. Aquele nosso velho não existia, pela
madona como o homem era antiquado.
Certo dia, estávamos no rancho, eu, Maria e as filhas,
chegaram duas mulheres e uma criança, estavam num fusca
foram chegando e entrando sem ao menos bater, dando com
nós perguntaram pelo velho, logo percebemos que eram
íntimas dele, e nesse dia ele não foi, ficaram sem graça em não
encontrá-lo diziam que o Seu Zé era muito bom e elas sempre
o visitavam.
Nós já tínhamos dado falta de algumas panelas e do
bule de ágata com seis canequinhas que a Maria levou para o
rancho, o velho nunca dava explicações convincentes para
aqueles sumiços. Quando vimos as duas vaconas procurando
pelo velho naquele mato isolado de tudo não tivemos mais
dúvidas, é possível que até tivessem um caso de sexo com ele,
mas vai se saber a que preço… O velho Carioca era madeira de
dar em doido.
Em 1985 o rapaz que era meu vizinho no Seleta a quem
dei o rancho, me escreveu dizendo que levaram o barraco
embora e só deixaram as colunas de cimento, já era de se
esperar ele não freqüentava aquilo.
No ano de 1986 que fui visitar a Ismênia que estava
doente, o Mingo nos levou até o Piúva para que víssemos de
perto o que fizeram com tudo aquilo. Foi doloroso ver o
inferno em que transformaram nosso paraíso. A rua principal
que dava acesso ao rio já não existia, abriram nova rua no
meio da vila formada do outro lado da valeta e que foi
formada pelos invasores. O antigo casarão da beira do rio e
que não sabemos porque chamávamos aquilo de clube já
estava abandonado e em ruínas.
Trepamos na laje do casarão de onde ficamos
apreciando o rio e a mata. A lembrança de um passado ainda
recente ainda estava bem latente. Nesse dia o que ficou
marcado para mim, foi ouvir o barulho de um machado que
algum lenhador estava utilizando para derrubar uma árvore.
O som das pancadas ressoava pelo vale do rio levando o som
para muito longe, então lembramos nos bons tempos que do
nosso rancho ouvíamos aquele mesmo toque do machado do
Zé Preto derrubando alguma árvore, daí o momento de
saudade…
Fomos até onde era nosso barraco, a mata tomou conta
de tudo, um aventureiro construiu uma pequena casinha ao
lado do rancho do Albino que era o Ipê e já não mais existia,
também essa casinha estava abandonada no meio do mato.
Conseguimos localizar o terreno onde era nosso rancho ao
avistarmos o pinheiro alto como dois postes, que o Nisio
havia plantado em 1970. O trilho que dava acesso ao rio
partindo no nosso rancho já não mais existia, estava coberto
por uma mata espessa. A casa do Mário antes tão bem
cuidada e sempre pintada já estava em estado de abandono e
em ruínas. Certas ocasiões sou a favor dos invasores, aquela
terra estava esperando valor por parte de algum especulador
imobiliário e fizeram bem em tomá-las, do lado do Piúva
aquelas terras pertencia ao Antunes, um português nefasto e
nojento que pelo tempo passado já deve estar junto com seus
afins.
O ruim da invasão é que o pessoal se apodera e forma
uma vila desordenada sem nenhuma preocupação com
higiene escola e por aí vai.
Nos bons tempos que íamos com o velho ao Piúva, a
noite sentados na varanda gostávamos de brincar com ele
perguntando se na manhã seguinte ele ia fazer compras na
feira da Vila, ou se ele ouviu o Guarda Noturno passar
apitando naquela noite, o velho respondia que nem em 30
anos aquele lugar se desenvolveria. Estava enganado meu
velho, após uns quatro anos se tanto toda aquele nossa
brincadeira se tornou realidade. Em 1985 estive em Santo
André, o Osvaldo cunhado da Maria disse que tinha ido onde
tínhamos o rancho de pesca e tudo aquilo estava tomado de
casas. Eu não acreditei mito no que ele disse, ele nunca tinha
ido lá comigo, acontece que ele sabi
causticante empurrando o carrinho de mão do Mário. Foi
demais, eu só soube disso muito tempo passado através da
Dona Maria que ficou com muita pena dele, aquele pessoal já
tinha abandonado o rancho, foi uma pena eu saber muito
tempo depois.
Mas todo esse comércio estava ali na beira do rio
Branco, acabaram com nosso recanto mágico, quem sabe até o
Guarda Noturno também estivesse por ali apitando?
Do nosso rincão não sobrou nada, o que vimos ali foi
um inferno com mil ôgros habitando tudo aquilo. Os
prenúncios de que tudo aquilo estava com os dias contados já
vinha de muito tempo atrás, o Nisio já tinha presenciado uma
invasão daquela gleba de terra próximo a Pedro Taques, a
polícia chegou em tempo e expulsou os invasores, eles apenas
deram um tempo.
A retirada de areia da cabeceira do rio já tinha sido
proibida há muito tempo, era comum no início toparmos com
os batelões transportando areia. A Prefeitura da Praia Grande
começou a captar água de uma cachoeira na montanha pra
baixo da última curva do rio, próximo ao depósito de areia.
Também já estavam construindo uma ponte ao lado desse
antigo depósito de areia. Nos dias de hoje acredito que tudo
aquilo já esteja devassado e repleto de pessoas morando por
ali. Foi uma decepção constatar que o progresso finalmente
chegou naquela região. Eu ia com o velho nos bons tempos até
a ponte da Pedro Taques lógico que íamos no motor, eu tinha
como objetivo ir até o Casqueiro, mas ficou só na vontade…
Lá pra baixo o rio é mais largo, eu vi pescadores
tirando redes cheias de parati e robalos…
O Mingo e o Silas chegaram a ir comigo até a ponte da
via férrea. Um fato inédito, nosso velho chegou a viajar no
trem que sobe aquele trecho da serra, hoje o trem de
passageiro não circula mais.

As decepções que tivemos em ver o progresso chegar
até nós e tomar conta de tudo ao nosso redor se tornaram uma
constante. Primeiro foram às matas da Rodhia no ano de 1952,
morávamos ao lado, era uma área de uns dois quilômetros de
extensão por outro tanto de largura, ali víamos cachorro do
mato tipo mão pelada, veados que iam comer farelo junto com
as cabras e uma infinidade de aves, eram paturis, saracuras,
garças, patos do mato que habitavam os vários lagos que
existiam lá dentro. Também os peixes que os vizinhos
pescavam, nós nunca pescamos em tais lagos. De repente
chegaram às máquinas e em alguns meses tudo aquilo estava
acabado.
Depois foi a vez do varjão do Antártica, era bem maior
que o primeiro, ali passamos nossos melhores momentos da
meninice, eram os lagos onde aprendemos a nadar e a pescar,
uma infinidade de frutas silvestres tais como araçá, gabiroba,
maracujá preto, murta, juá e a banana do brejo que é parecida
com uma espiga de milho também dentro da casca e muito
doce, nunca mais vi essa fruta. Também tinha o cerrado onde
pegávamos balões no mês de junho e depois tornávamos a
soltá-los nas fogueiras de festas juninas.
Foi outro lugar que no início dos anos 50 chegaram as
máquinas que derrubavam as colinas do outro lado do rio e
aterraram todo o varjão do Antártica, sobraram somente os
lagos que a partir dos anos 70 também deram seu “canto do
cisne”…
Hoje no local funciona um terminal onde beneficiam
cimento tendo até uma linha férrea cortando parte daquela
antiga mata, em nossa juventude jamais imaginaríamos ver
uma coisa daquela. Também o WallMart funciona naquele
local.
Em 1966 jogaram a nossa casa no chão, moramos ali
por 25 anos, nessa casa nasceu a Neusa, morreu minha mãe e
ali a Ismênia se casou. Logo em seguida acabaram com nosso
campo de futebol, que desde 1950 tivemos ali nossos melhores
momentos tanto da meninice como da juventude já que
tínhamos o time de futebol que disputava o campeonato da
cidade.
Depois chegou a vez do fundão que ficava em Ribeirão
Pires, era um canto da represa encravado num vale com muita
mata onde quase todo domingo íamos pescar com o pessoal
do Seu Nenê. No fundão ficou marcada uma passagem que
rendeu gozação por muito tempo. Íamos de caminhão até
Ribeirão Pires, depois fazíamos uns 20km por uma estradinha
ruim. A Ismênia e a Mirtes filha do Seu Nenê participavam
das pescarias. O ano foi de 1953, num domingo lá estávamos,
aquele pessoal só pescava cará e como isca usavam minhoca,
nunca vi nenhum deles se preocupar em pegar lambari pra
fazê-lo de isca, lógico que eu também não sabia disso, mas
hoje fico imaginando como eles eram ruins para pescar. Nessa
pescaria o João Panunzio inovou e colocou um cará grande
num anzol e deixou a vara no meio da vegetação aquática na
tentativa de pegar um trairão.
Acontece que o infeliz aqui andando pelo barranco
topou com a vara armada na espera e foi curiosar para ver se
tinha peixe. No que vi o cará preso no anzol do homem não
tive dúvida e guardei no sapicuá. Do alto da minha burrice
não percebi que o peixe tinha sido colocado naquele anzolão,
o homem enfiou o peixe pela boca que foi sair no rabo,
também ele não sabia nada de pesca, eu nem sabia de quem
seria aquilo, fiquei por ali até que chegou o Panunzio muito
eufórico dizendo que um trairão tinha comido o cará que ele
havia iscado. Foi um reboliço entre a turma, todos começaram
a preparar linhadas iscadas com carás, afinal a traíra já tinha
comido a isca do homem.
Aquele pessoal fazia caso até de um carazinho, eles
levavam o que pegasse para comer. Então dei conta da minha
burrice ao tirar o peixe da vara do Panunzio, foi uma agitação
incrível, todos foram para o local jogar suas linhadas para
todo lado onde o trairão tinha mordido a isca do homem. Até
a Ismênia e a Mirtes entraram naquele fuzuê, o pouco peixe
que tinham conseguido usaram como iscas em suas linhadas.
Ninguém se tocou que não participei daquela agitação que se
formou…
Confesso que fiquei assustado, provoquei aquela
situação inconsciente. Como era de se esperar ninguém pegou
nada naquelas linhadas. No regresso o caminhão nos deixava
na casa do Seu Nenê como fui o último a sair meio sem graça
contei a ele que tinha sido eu que tirei o peixe do anzol do
Panunzio. Ele não havia prestado a atenção no que eu disse e
pediu para repetir, então o homem arregalou os olhos e virou
bicho, não se conformava que foi tapeado naquela história do
trairão, só ele desperdiçou nove carás utilizados como isca e
que bem poderiam ser aproveitados para comê-los. Esse Seu
Nenê era um velhão filho de italianos muito boa gente, mas
quando ficava nervoso desandava a proferir palavrões na sua
língua que ninguém entendia nada. Começou me chamando
de bruta béstia, escursulento, mascacione e depois se
lembrava do trairão arrematou: “tu santo li incarióla com a
traíra…”.
Mas logo ele já tinha esquecido, no outro dia contou ao
Panunzio e o homem não se conformava por eu não perceber
que aquele cará tinha sido enviado num anzol que era tão
grande quanto o peixe! No domingo seguinte lá estávamos de
novo, passados muitos anos aquele pessoal ainda se lembrava
daquilo. Todos aqueles pescadores já morreram, o último foi o
Irineu em 2002. Quanto ao João Panunzio, ele pescava no rio
Grande quando o barco bateu numa pedra no meio do rio,
bom nadador amarrou o motor no barco emborcado e rumou
para o barranco, chegou e sentou para descansar, um enfarto
o matou ali mesmo. Bons fluidos estejam com aquele pessoal,
eram gentes da melhor qualidade.
Em 1978 fui com meu pai até o fundão que ficava em
Ribeirão Pires. O local que tanta saudade deixou já não existia,
a especulação imobiliária transformou todo aquele vale
exuberante em chácaras e mansões, a mata outrora muito
cerrada tinha virado um vasto campo árido, foi ali que peguei
meu primeiro bagre na represa e também o maio,
transformaram aquilo numa selva de pedra.
Mas foi no rio Branco onde fizemos nossas melhores
pescarias, o grupo era sempre o mesmo, Alvino, Ludovico,
Renato, Bértico e eu, as vezes o Valter, Mingo e o Bastião
também iam. Sempre levávamos para casa 4 ou 5 peixes pegos
no espinhel, nós pescávamos naquela vazante que mais
parecia um riozinho pra baixo do porto do Seu João, já o
pesqueiro de linhadas ficava pouco antes num barranco
arborizado onde tínhamos sombra o dia todo, saíram muitos
bagres e tajabas dali. Em julho de 84 ainda fui pela última vez
pescar nesse local tão agradável.
A partir de 1972 eu comecei a pescar naquele rio com o
pessoal do bombeiro, o grupo era formado por seis rapazes,
apenas uns dois eram bons de pesca iam mais para jogar
baralho e tomar cachaça. Íamos às folgas do meio da semana
que eram dois dias e meio, até o barco do Albino nós
usávamos, abrir cadeado para aquele pessoal era o de menos.
Depois a partir de 74 ou 75 nosso velho começou a freqüentar
o rancho, ele ia de ônibus, posso garantir que aquele rancho
foi o lugar que mais alegria deu a ele o que ele adorava aquilo
não estava escrito, tanto é que não teve coragem de dizer a ele
que o Ludovico não gostava de vê-lo morando ali, ficaria
arrasado e nunca mais freqüentaria o rancho, afinal aqueles
parvos também eram donos… Mas que foi uma pena eu não
ter sabido desse negócio no tempo que freqüentávamos
aquilo, ah, isso foi…
Muito esquisito se meter com um velho já no fim da
vida, afinal eles não ajudavam em nada naquele barraco, os
idiotas não ajudavam nos impostos e tudo mais justamente
pelo fato do velho passar ali a maior parte de seu tempo, uma
mesquinharia por nada.
O velho gostava quando aparecíamos fora de hora,
sabia que não teria mais sossego, mas também sabia que ia se
divertir muito e a rapaziada não esqueciam dele, eram muito
gratos. Nosso pai só tinha medo de brigas quando via o
pessoal entrar firme na pinga, numa madrugada, seriam umas
duas e meia, eu e o Melinski limpávamos peixes lá fora e
ouvíamos a barulhada lá de dentro, nisso sai o velho muito
assustado dizendo que estavam brigando lá no quarto, fomos
vê o que acontecia, eram o velho Borges e o Benedito Claro
ferrados numa luta violenta, o Borges já estava com seus 67
anos e o Claro 25, estavam bêbados o Borges da Congregação
bebia vinho, muito vinho, e o rapaz era pinga mesmo, acabei
com a luta o velho poderia sofrer um infarto. O Borges era
forte como um touro sempre havia alguém para desafiá-lo.
Quanto ao nosso velho, só entrou novamente quando viu que
era brincadeira, tanto o Borges quanto o Claro já se foram, o
velho de enfarto e o outro de câncer aos 32 anos.
Bons tempos aqueles chegávamos ao Piúva lá pelas
onze horas da noite, depois o horário mudou, saíamos as onze
do serviço e chegávamos perto da meia noite, chegava e já
íamos para o rio armar o espinhel e redes, nossas iscas
ficavam numa caixa fechada com sal, bem melhor que gelo. Lá
pelas duas e meia ou três horas dávamos uma vistoria em
tudo e sempre tínhamos peixes para comer naquela
madrugada regada a cerveja ou caipirinha gelada…
Dormir para aquele pessoal era o de menos, estavam
sempre dispostos a ir para o rio e ainda arranjavam tempo
para jogar baralho. Uma garrafa acompanhava o pessoal pra
todo lugar que iam, não havia o perigo de excessos eu escolhia
a dedo aquele pessoal. Nós armávamos as redes naquele
poção na curva do rio antes do porto do Seu João, de
madrugada íamos revistá-las e antes que eu pudesse impedir
os caras se jogavam na água e faziam um escarcéu dentro da
água para espantar as traíras para dentro das redes, dava
certo a loucura dos caras, com isso naquela madrugada
fritávamos algumas traíras que até nosso velho comia com
uma caipirinha…
O interessante era que o velho gostava daquele fuzuê,
íamos para o rio a noite e ele se preocupava em fazer um
arroz para a cambada, mesmo sendo para o pessoal limpava
tudo. Nos meses de junho e julho o frio da madrugada era de
tal modo que todos tinham dificuldade em dormir, mesmo
anestesiados pelas pingas. Até nosso velho acostumado com
aquilo se queixava do frio. Numa dessas noites os caras
fizeram uma fogueira enorme que ajudou em muito, alguns
até dormiram lá fora embrulhados no cobertor ao lado do
fogo.
O velho ficou preocupado e a noite toda levantou para
dar uma olhada e ver se estava tudo bem com os camaradas.
Na manhã seguinte deu uma censurada neles dizendo que ali
havia cobras e até onça. Coitado do velho, mal sabia ele que
aqueles caras eram piores que a cobra e a onça juntas… Mas
com o tempo frio tínhamos nossa compensação pegávamos
várias tainhas nas redes e com o tempo frio não pegávamos
nada no espinhel. Na verdade nunca tivemos redes boas para
pegar tainha caso tivéssemos malha de onze a treze seria
muito mais fácil, pegaríamos tainhas e paratis.
Tínhamos um companheiro de trabalho que queria a
todo custo pescar com a turma no rio Branco, ninguém
gostava dele, o homem não podia ver o saco de um chefe
dando sopa que logo estava pendurado nele. Tanto encheu
que acabamos levando ele. Seu nome era Aníbal Sabião, nessa
pescaria não descemos o rio como de hábito, fomos pescar rio
acima e na volta lá pelas dez e meia da noite, deixamos o
barco no porto do clube por ser mais facial ir a pé até o
barraco seria mais demorado remar o barco nas intermináveis
voltas que o rio dava naquele trecho. Esse Aníbal além de
puxa saco também era muito medroso, ele nunca andava no
fim da fila sempre na ponta. Aquele trilho que dava acesso ao
rancho estava muito sujo, o mato tomou conta de tudo,
andávamos devagar e com cuidado. Ao passarmos ao lado
daquele angico enorme que ficava ao lado do rancho do
Albino e que depois o Mário cortou tal árvore para fazer lenha
para o forno, o urutau deu aquele seu grito sinistro e que de
fato assusta quem não o conhece, meu amigo, o Sabião
ouvindo aquilo saiu num pique pela escuridão em direção ao
barraco que não ouve quem pudesse parar o homem, a turma
irrompeu na maior vaia e assobios o que deve ter assustado o
Saião ofegante, sujo, esfolado pelos tombos que levou
correndo pela escuridão, naquelas manilhas que serviam de
ponte que o Nisio colocou antes da entrada para o Piúva bem
ali o homem caiu o maior tombo e por pouco não quebra a
perna. Rimos mais ainda quando ele perguntou que demônio
foi aquele que gritou daquele jeito…
Infelizmente tínhamos aquele tipo no nosso quadro, era
remanescente dos anos 50. Parece-me que também já se foi
desta para melhor…
Algumas pescarias passavam raiva em nós, em 1978
fomos para lá em oito companheiros, eu nunca tinha pescado
com alguns deles e logo percebi que não ia dar certo. Iam para
beber e dormir. A tarde fui com o Milton que era meu
companheiro de pesca armar as redes e o espinhel, já estava
escuro quando chegamos, achamos esquisito não ouvir
barulho dos caras e também não encontramos ninguém no
barraco, nem o lampião acenderam. Pegamos faroletes e
fomos procurá-los, cismei de ir ao rancho do Albino, lá
encontramos quatro dormindo sobre uns estrados velhos
jogados por ali, foi com dificuldade que levamos os caras para
o rancho, saindo dali topamos com o português Machado que
vinha saindo do mato parecendo um lobisomem, estava
perdido e assustado dizendo que no nosso porto tinha um
bicho fazendo um barulho esquisito, deixamos os caras no
barraco e fomos ver o tal bicho, de fato ouvíamos o ruído de
longe, mas nos pareceu um ronco de alguém dormindo,
fomos chegando devagar, ao iluminar a carcaça daquele barco
velho que pertencia ao meu pai lá estava o Munhoz dormindo
completamente bêbado. Era o último que faltava da cambada
inconseqüente.
Mais tarde ele disse que saiu sem rumo e perdido dos
outros e vendo o barco na sombra “desmaiou” ali mesmo. O
barulho que ouvíamos era seu ronco dentro da quilha do
barco que era aberta, ele enfiou a cabeça ali dentro e o barulho
do ronco ressoava esquisito, o português que nunca tinha ido
a uma pescaria achou que era algum bicho.
Aquele barco era do nosso velho que anos antes tinha
comprado, sabe-se lá por quanto não empurraram aquela
coisa a ele, não tinha estabilidade, muito alto suas laterais e
ruim para remá-lo, esses eram os predicados do “couraçado”.
Mas o velho muito tempo depois disse que tinha
comprado aquilo para agradar o pessoal do Alvino, estavam
sempre por lá e só tinham um barco, eu já imaginava que seria
isso, ele sempre foi muito prestativo. Mas aquele pessoal
preferia falar mal do barco sem refletir do porque ele adquiriu
aquilo, alguns até levavam a chacota para o lado da
estupidez… Quando estávamos pó lá dificilmente o velho
entrava no barco, era para não atrapalhar como ele dizia.
Ninguém entendeu o espírito da coisa e que sua intenção era
justamente agradar o pessoal. Agora é tarde meu velho para
reconhecermos isso, mas valeu sua intenção, tal barco acabou
apodrecendo no capinzal ao lado do porto.
Desde que o homem inventou alguma coisa que
flutuasse com ele em cima, aquele barco certamente foi o pior
protótipo sem dúvida, não teria estabilidade nem sobre dois
cavaletes. Mas aqueles camaradas que dormiram bêbados
espalhados pelo mato tiveram muita sorte em não ter sido
picados pelas cobras que seguramente ali têm muitas. Com
tudo isso ainda pegamos no espinhel um robalo de seus
quatro quilos e algumas traíras.

Quando o Mingo nos levou ao rio Branco em 1986 já se
passavam 12 anos que não víamos aquele lugar, nesse espaço
de tempo tudo foi mudado para pior, o meio ambiente foi o
que mais sofreu. Devastaram uma mata de uns seis
quilômetros quadrados, o esgoto correndo a céu aberto cujo
destino final era o rio. Ao ver o que fizeram com o nosso
antigo paraíso, mal comparados com o sujeito que namorou
uma jovem de 18 anos e depois de certo tempo se separaram.
Passado muito tempo ele encontra com ela na rua e a
reconhece, acontece que a imagem dela que ficou retida em
sua memória por esse longo tempo foi sua juventude no
esplendor de seus 18 anos, decepcionado ao ver o que o velho
e implacável tempo fez com a moça, saiu de mansinho e
frustrado, foi o que aconteceu comigo naquele dia… É bem
certo que ela o reconheceu o sentimento foi recíproco.
Depois vimos duas mulheres atravessando o rio em
nossa direção, perguntei onde moravam, apontaram o outro
lado do rio na direção do baixadão tão nosso conhecido.
Fiquei com pena delas, pois aquele local era o primeiro a
inundas nas enchentes. Imaginei que fossem “suecas” pelo
forte sotaque, logo tiraram minha dúvida, disseram que
tinham vindo da Bahia fazia dois meses. Certamente
invadiram o terreno e o fizeram no pior lugar.
Hoje tudo aquilo deve superar todos os índices
imagináveis de poluição e também se tornou perigoso pescar
naquele trecho do rio, o que deve estar infestado de ladrões
por ali está bem acima das “previsões da ONU”.
Muitos anos seguidos no dia 4 de junho eu ia buscar o
velho quando estava no Piúva para levá-lo para casa. Era
sabido dos filhos que no seu aniversário ele seguia uma antiga
tradição de sua família que vinha desde o ano de 1895 que foi
o nascimento do primeiro irmão dele.
No dia do aniversário de cada um deles tinha um bolo
acompanhado de uma chocolatada, desde nossa infância
tínhamos isso em nossa casa. Se eu não fosse buscá-lo o
homem não aparecia, talvez fosse um jogo dele para ver como
andava sua popularidade com os filhos, na verdade somente
eu ia buscá-lo.

Certo dia apareceu no Piúva um sujeito sondando
possibilidades de se apossar de terras na beira do rio, o
homem queria criar porcos por ali. Fomos até nosso
ancoradouro de barcos e disse a ele que respeitando aquele
pequeno proto que o utilizávamos que fizesse o que bem
entendesse. Até o alertei sobre as enchentes de fim de ano e
também da maré alta que alagava toda a baixada ao longo do
rio. No dia seguinte lá estava o homem com mias dois sujeitos
preparando o mangueirão alguns metros depois do nosso
porto. Como eu estava de férias fiquei por ali para ver o fim
daquilo.
Feito o cercado com madeira retirada dali mesmo
chegou o sujeito com uns 15 porcos num caminhão. Eu vim
embora e o velho ficou por lá. Dizia nosso pai que o sujeito
largou os porcos por lá e sumiu, nunca aparecia par ver se
estava em ordem. Caso fosse nos dias atuais a cambada já
tinha levado tudo…
Mas a quadra de maré alta chegou e começou a alagar
todo aquele baixadão que ia do nosso porto até quase no
casarão que era o Clube. Mesmo para nós ficava difícil pegar o
barco com a maré cheia. Mas nosso velho percebeu a água
subindo e encontrou os porcos já dentro da água, soltou a
porcada que se embarafustou pelo mato… Depois de dois dias
foi que o “paquiderme” apareceu todo afobado, alguém tinha
avisado a ele sobre a alta da maré. O homem já veio com o
caminhão para levar os porcos, nosso velho que sempre foi
metido a ser prestativo foi ajudar a capturar os suínos no meio
do matagal, foi a tarde toda correndo atrás dos porcos que
haviam se espalhados até o clube, dizia ele que se arrependeu
de usa generosidade…
Por muito tempo ficou em pé aquele mangueirão,
sempre que passávamos por ali alguém sempre tinha o que
falar daquele imbecil.
Em 1962 que foi a primeira vez que fui naquele rio,
fiquei intrigado com uma armação de madeira do que tinha
sido uma plataforma dentro da água, era construída com
peroba e parafusos de latão ou bronze sei lá que ficaram
imunes as ferrugens por todo aquele tempo. Depois
conversando com o Seu Inácio que morava ao lado do rancho
dos Compadres e pai do Salvador, ele me disse que aquilo foi
escoadouro da produção de banana que vinham do outro lado
do rio, estava desativada desde 1950, desde então abriram
uma rua bem pra baixo daquela vazante onde armávamos o
espinhel, ali o trilho do vagonete chegava na beira do rio, nós
já encontramos também aquilo desativado e tinha trilho
caindo dentro do rio com o desbarrancamento. Também
chegamos a ver dois troles de madeira com apenas duas rodas
frente à casa do Mário. Pelo que se percebe o lugarejo deve ter
sido muito movimentado em outra época que já vai longe.
Com toda certeza aquele casarão da beira do rio se
destinava a uma boate já que o movimento de pessoas por ali
era intenso, tanto por trabalhadores como comerciantes que
certamente iam para negociar bananas. O Seu Inácio me disse
isso, o Nisio confirmou, aquilo ia ter uma boa clientela, o local
era favorável para a boate, mas também para muita briga e
mortes. Vale lembrar que a Prefeitura não deu o alvará de
funcionamento. Esse tal de Seu Inácio morou ali por longo
tempo, disse ele que foi para lá em 1949, quando o
conhecemos já devia estar com seus 80 anos, se bem lembro na
segunda vez que lá estivemos ele já não morava mais ali ou
tinha morrido não sabemos, quanto ao Salvador esse ficou
mais uns tempos por ali.
Pouco acima do Piúva existiram três casas de alvenaria,
uma conhecemos em pé e abandonada e tempos depois o
Alexandre foi morar por lá, ele antes morava na serra onde
depois se mudou para lá o Zé Preto e sua mãe a Dona Vitória,
depois tal casa também ruiu e a mata tomou conta de tudo.
O Seu João dizia que no bananal onde moravam a
Angelina e seu marido Carlito, tinha sido uma fazenda tocada
por escravos, o Carlito estava ali desde 1949 e já encontrou a
linha férrea com o vagonete e todo o bananal abandonado. O
Carlito me dizia que nos bons tempos ele pegava na rede
muito cabeçudo de mais de dez quilos e muita tainha e que
tudo aquilo tinha diminuído e ele não sabia a causa. Algumas
vezes eu topei com ele retirando suas redes sem um peixe
sequer, e olhe que eram redes enormes, ele pescava naquele
remanso que chamávamos de riozinho e ficava bem pra baixo
do porto do Seu João. Ele via nosso espinhel e dizia que não
gostava daquilo por ser muito trabalhoso e difícil do peixe
pegar naquilo… Que era trabalhoso é verdade, mas sempre
pegávamos bons peixes no espinhel.
Mas quanto ao sítio deles, gostávamos de passear por
lá, tanto as meninas e eu e a Maria também o velho gostava de
brincar no vagonete.
Quando fui pescar naquele rio somente com o Tarcisio,
numa segunda-feira pescávamos no porto do Clube quando
chegou uma traineira (barco de pesca de sardinha) e
começaram a descarregar fardos enormes, notei que os caras
estavam de olho em nós, chamei o Tarcisio e fomos embora,
aquilo era contrabando vindo dos navios ancorado longe do
porto. Para nós seria muito perigoso ficar por ali. Os fardos
foram colocados no meio do mato e mais tarde o caminhão foi
transportá-los, estávamos na casa do Mário quando ele
passou. O Mário sempre me dizia daqueles barcos
“desovando” no porto do clube, já estava acostumado em ver
aquilo. Agora quanto ao casarão ser feito para aquele tipo de
coisa estava descartado, o Mário nunca viu os contrabandistas
guardarem nada lá dentro, mesmo porque sempre teve um
morador naquele casarão. O primeiro morador que lembro de
vê-lo foi um tal de Francisco, sua mulher e três filhos
pequenos, coitados nunca moraram no mato como ele dizia e
quem mais sofreu ali foram às crianças, viviam inchadas pelas
picadas dos borrachudos.
Não esquentaram o lugar, logo foram embora e nesse
ínterim apareceram o Seu Cristóvão e Dona Elza que diziam
ter vindo do Rio de Janeiro. O curioso era que falavam que o
patrão deles era o Roberto Peniche, aquele jogador de futebol
do Rio de Janeiro que salvo um engano jogou no Vasco da
Gama. Seria verdade? Na verdade esse pessoal era aliciado
para morar num lugar daquele sem recurso nenhum. Nunca
consegui saber a verdade daquilo e desse jeito vai continuar,
pois ambos já morreram.
Esse casal morou por lá bom tempo, a Ismênia
conseguiu para eles tomarem conta de um sítio em Cesário
Lange.
Então chegou o Zelão, um negro velho, um desses paus
rolados na última enchente, do jeito que veio também se vai.
Dizia nosso pai que uma sexta-feira veio embora para receber
seu salário, na terça-feira retornou ao rancho e já não
encontrou o Zelão no casarão, nem o Mário soube dar notícias
do homem… O que sabemos era que aqueles moradores do
casarão ganhavam muito pouco pra tomar conta daquilo, isto
quando ganhavam…
O velho Piúva proporcionava momentos hilariantes até
bem divertidos. Certo dia em que lá estávamos, Alvino,
Ludovico, Renato, Bértico, Valter e eu passamos uma boa hora
rindo de uma proeza do Valter. Estávamos se encharcando de
caipirinha (esse é o termo certo) aguardando o Ludovico dar o
grito para o almoço, mas estávamos intrigados com uns
ruídos secos que vinham lá da rua frente a entrada para o
rancho. Aquele barulho já estava constante e o Ludovico
resolveu dar uma olhada na janela, olhou do lado direito, do
esquerdo, até que deu uma pescoçada na direção do coqueiro
onde ele gostava de deixar o carro aproveitando a sombra do
mesmo.
O homem quase caiu duro com o que viu, o Valter
jogava pedras no cacho de coquinhos tentando derrubá-los, as
pedras batiam no tronco do coqueiro e caiam sobre o capô e o
teto do fuscão azul escuro que era o xodó dele, o barulho que
ouvimos era só isso e nada mais sério…
O Ludovico ficou estático diante daquela cena dantesca
não queria acreditar que seu pimpolho estava detonando o
carro!!!
Quando o homem saiu daquele torpor que o acometeu,
deu o maior grito: “fia da puta de sujeito burro para com isso”
e imitou uma corridinha para pegar o Valter, lógico que não
deu em nada aquilo. Depois voltei no tempo e fiquei
ensimesmando, caso acontecesse aquele negócio com o nosso
velho certamente o façanhudo não sairia ileso e impune, ele
pegaria o réu já previamente condenado sem a apelação de
advogados e faria a “justiça” dele ali mesmo sem dó nem
piedade…
O carro ficou com uns calombos e na hora ninguém
soube onde o sacripanta conseguiu os pedregulhos do
tamanho de laranjas para jogar nos coquinhos, afinal era só
mato e brejo.

Engraçado, hoje passados mais de 33 anos, escrevendo
essas bobagens comecei a meditar de onde ele tirou as pedras
naquele mato e brejo, até que consegui decifrar “tão intrigante
mistério”, o idiota do Paulo Maluf, aquele, no início dos anos
70 cismou que no interior do estado de São Paulo havia
petróleo, vocês lembram disso, bem em frente ao nosso rancho
os imbecis perfuraram um poço, foram dezenas de metros que
além de barro e água, muita água também trouxeram a tona
muito pedregulho que eram justamente a munição do Valter…
Agora quanto ao rapaz jogar as tapiacangas (esse é o
nome das pedras) sobre o carro foi ou não foi o marco divisor
entre a burrice e a estupidez? Ou não houve marco nenhum?
Era costume dos adultos falarem aos meninos que
participavam das pescarias, para que usassem o limpador de
memória ao retornarem para casa, isso para que esquecessem
o festival de bobagens que ouviam naquele barraco. Não sei
porque o pessoal perdia tempo com o Valtinho, limpar o que
naquela cabeça vazia?
Em 1977 o Nisio comprou um motor de popa, quando
nos encontrávamos naquele rio e eles já não freqüentavam o
rancho Piúva, era comum o Márcio passar por nós numa
correria naquele rio e nem cumprimentava o pessoal que já
tinha sido seus companheiros de pescaria. Eles ficavam no
rancho do Albino. Logo percebemos que roubavam nosso
peixe tanto da rede como do espinhel, era esquisito não
pegarmos nada enquanto eles tinham muito peixe, o
Ludovico, em que pese o fato de ser do lado deles já tinha
percebido isso. O Márcio sabia onde esticávamos as redes e o
espinhel. Aquele pessoal até virou a cara para nós motivados
pela fofoca de algum da nossa turma…
Tinham uma infeliz arrogância pelo fato de possuírem
o motor de popa, parecia uma exclusividade somente deles,
pensar o que de uma mentalidade mesquinha e pequena
como a deles. Eles deveriam saber que a barreira do poder
aquisitivo não é fixa, assim como na arte, ciência e tudo mais
na vida…
Eu conversei com o Nisio por telefone tempos atrás, o
homem até ficou contente em falar comigo, pelo menos assim
me pareceu, disse que não pesca e não caça mais, o IBAMA
apertou o cerco e ele foi obrigado a se desfazer do seu viveiro
onde tinha dezenas de aves algumas até raras. Disse ainda
que sua maior vontade seria pescar no Araguaia, pois os
documentários que assiste na televisão o deixam com água na
boca. Para deixá-lo mais agoniado disse a ele que o Alvino e o
Mingo sempre vinham pescar por aqui, o Nisio me disse que
certa vez falou com o Alvino para avisá-lo quando viesse ao
Araguaia, pois ele queria vir também, mas o Alvino não
comentou mais nada com ele.
O Márcio pediu ao Nisio para pegar meu endereço para
virem pescar, quando o Nisio me disse isso chegou minha vez
de desconversar. Eles que venham, o rio está lá para recebê-
los… Longe de mim. Tanto o Ludovico quanto o Márcio foram
os articuladores das fofocas que se abateram sobre mim
naquele rancho. O Nisio se lamenta que seu melhor amigo
que é o João Polaco se mudou para São José dos Campos. Seus
parceiros de pesca que eram o Irte e Ludovico também já se
foram. Ele está com 80 anos (2005).
O Nisio perguntou que tipo de peixe pego no Araguaia,
como eu devia a ele algumas fotos do Piúva prometi mandar
algumas dos peixes que pesco aqui no Araguaia. Caprichei na
escolha, fiz ampliações tipo postal dos três peixes maiores que
já peguei, uma piraíba de 127kg e 1,92m, uma pirarara de
31kg e um pirarucu de 60kg (todos foram pesados na cidade,
não estou calculando peso).
Eu tenho certeza que o Márcio deve ter rasgado tais
fotografias, não é burro deve ter percebido a ironia. Mas que
os tais peixes causam uma dorzinha de cotovelo nos
pescadores de tilapias não tenho a menor duvida! Eu estava
devendo isso a eles. Ainda nessa conversa que tive com ele,
disse a ele que para minha velhice não preciso mais nada,
afinal ao lado da minha casa bem no fundo do quintal passam
dois rios da bacia amazônica, o Araguaia e o Vermelho… Sei e
concordo que me rebaixei ao nível deles com tais vaidades
tolas que não levam a anda, mas devem entender quem vier a
ler essas coisas de quem bate esquece, mas quem apanha
sempre relembra…
Fui menosprezado por aquele pessoal, eles sabem que
vivo aqui desde os anos 80 e por sinal muito bem graças a
Deus.
Quanto ao Márcio fiquei com pena dele, sinceramente,
estava para se aposentar por apenas alguns anos, sofreu um
desses reveses que vez ou outra nos atinge, perdeu o emprego
e não conseguiu reverter à situação, hoje está ajudando os
irmãos na fabricação de móveis em sua casa. Ele não é um
marceneiro, sempre trabalhou em escritório e está se virando.
Num caso desse você fica com dó da pessoa, no finzinho da
jornada de trabalho de toda sua vida não é fácil passar por
uma situação dessa.
Com tudo as magoas dos tempos do Piúva já se
foram e muitos dos protagonistas já estão do outro lado a lista
já está enorme: Ludovico, Bastião, Bértico, Seu João, seu filho
Tarcisio, Irte, Haroldo, Evaldo, Leon, Benvenuto pai e filho,
Ismênia que sempre ia lá, José Carioca que dentre todos era o
que mias adorava aquele barraco, e de tabela também já se
foram o Mário do pão e a Dona Maria, Seu Cristóvão, Epifânio
este afogado no rio e quanto outros que não sabemos nestes
22 anos que nos afastamos de lá…
O passar dos tempos cicatriza todas as feridas do
coração, o velho Osmar sempre recorreu ao antigo provérbio
latino onde o excelso poeta dizia:
“Non curantor di lôr, pauci guardiã sed”.
Que os escribas traduziram como: Certas dores não têm
cura, mas aguarda que elas passam… É o que faço. Mas tanto
as alegrias como as tristezas, tantos os aborrecimentos quanto
às divergências, já desapareceram nos horizontes dos tempos.
Estão começando a ficarem esquecidas em algum lugar
do passado…
De um modo ou de outro, todos deixaram saudades em
nossa memória.

 

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